Crise? Que Crise? ( actualizado ).
"Não. Não é sobre a crise, nem sobre futebol, nem sobre Santana Lopes. Sobre todas estas coisas já disse o que tinha a dizer para já. É sobre o que está atrás, ao lado, em cima, à frente. Nós, os portugueses. Onde está o meu casal que protestava na Ponte 25 de Abril, há exactos dez anos?
Mais velho, certamente. Divorciado, quase certamente. O rapazinho que a fazia levantar cedo para ir para o infantário está no secundário e vive com a mãe. O outro, o mais novo, vive com os avós. O mais velho é o "problema" da mãe e ela é o "problema" do filho. Furou uma orelha e é "gótico". Em bom rigor devia ser "hip-hop" e colocar duas argolas nas orelhas e dizer "iô", mas o rapaz tinha tido uma namorada "gótica" nas primícias da vida e por imitação também se fez discípulo do Reich de mil anos. A mãe acha que ele é parvo e ingrato e não sabe o que fazer dele. Tem más notas, mas passa. Chumba a Português e Matemática, mas passa. Há-de chegar à universidade e ser doutor. Ela casou de novo, com uma variante mais nova do seu anterior marido, mas discutia de manhã à noite, e, um dia, ele foi-se embora. Discutia o dinheiro, que falta, discutia a vida, que não tinha, discutia as coisas, que se avariam, discutia os políticos, discutia o ex-marido que a deixou e não lhe dá o dinheiro que ela precisa para "educar" o filho (e secretamente suspeitava que ele era mais feliz), discutia o segundo marido que fugiu, mas sem animosidade. No fundo, ela percebia por que razão ele se tinha ido embora e, pensar isso assim, fazia-a ainda mais vítima e ela sentia-se bem nesse papel. Que outro poderia ter? Já não vota na CDU, mas vota no PS e, nas europeias, votou no "Bloco". Uma vez telefonou para o Fórum Mulher da TSF, mas não conseguiu entrar no ar. Não havia ar que chegasse. Queria protestar. Está triste e infeliz: não fez da vida nada do que queria. Está ainda mais triste e infeliz porque já percebeu que nunca mais vai ter razões para deixar de estar triste e infeliz. Continua a viver na sua casa de Paio Pires, na margem errada do rio.
Ele teve mais sorte - já passou para o outro lado da ponte. Sentiu um enorme alívio e uma pequena culpa. Tinha uns amigos e os amigos são gregários. As amizades masculinas são mais instrumentais em períodos de crise, não têm tendência para chorar no ombro uns dos outros. Fora da Margem Sul e daquela mulher, a quem ele chama a "mãe do meu filho" (a mulher chama-lhe "o filho da puta", habitualmente), arranjou umas "namoradas" e dá-se bem com o sistema, com a "liberdade". Vive num apartamento em Rio de Mouro, que era dos pais e que estes lhe emprestaram. A mãe vai lá a casa, arruma-a, uma vez por semana, e deita fora umas garrafas de "whisky". A mãe pensa: "Ele bebe demais, mas é bom rapaz." Compra o "Record" todos os dias. Vê o "professor" na TVI e gosta muito. Leva os argumentos do "professor" para as discussões do emprego. Não gosta de quem o "professor" não gosta, gosta de quem ele gosta. Agora já não é um eleitor secreto de Cavaco, agora vota no PSD às claras.
Todos andaram "no futebol" nos últimos dois meses. Foi uma festa, pá!, melhor que o 25 de Abril. Ele foi ver um jogo e pôs uma bandeirinha no carro e discutiu com os amigos longamente sobre todas as peripécias do esférico. A maioria destas intensas conversas teve-as no emprego. No emprego, numa repartição pública, ninguém verdadeiramente trabalhou durante o Euro. Tinham trazido uma televisão pequena e viam todos os noticiários e programas desportivos. Ou seja, não viam outra coisa. No carro, na rádio, a mesma coisa, e, mil horas depois, não podia caber mais nada na cabeça que não fosse futebol. Qual era o problema, não era a pátria que estava em jogo? "Heróis do mar"...
O "gótico" viveu praticamente o Euro fora de casa, diante dos ecrãs gigantes, na rua a festejar todos os jogos, nossos e dos outros, e a consumir litros de cerveja e algumas substâncias ilegais diversas. Pintou a cara de vermelho e verde e gritou o "às armas" do hino, com vontade de partir a cara aos ingleses. À falta dos ingleses, que tinham o mau hábito de responder, os pretos serviam. O resto da letra não sabia e não entendia. "Egrégios avós"? O que é isso? Avós que iam à igreja? Não podia ser porque os avós dele eram alentejanos e nunca tinham ido à igreja, a não ser para se casarem, para baptizar os filhos e para morrer. Fora disso "eram contra os padres". Ele suspeitava que a avó fazia umas rezinhas, mas, como o avô era comunista e fora ferroviário no Barreiro, não podia ser "egrégio". Adiante. "Às armas!"...
A mãe também pôs uma bandeirinha em casa e foi um dia para a rua com umas amigas do emprego. Era "trabalhadora da administração local" e comprara uma camisola não oficial na feira a uns ciganos. Invejava as raparigas que colocavam a tirinha verde e vermelha no sítio em que ela tinha a camisola e que gritavam, em vez de "com a força...", "come-me à força...". Uma inveja mortal, absoluta, mortífera, vinda de lá muito dentro, com uma força maior que tudo. Se aquela força viesse, pura e intacta, ao de cima, não ficava coisa com coisa no universo. Uma vez emocionou-se e gritou muito "Portugal", mas depois passou-lhe. Chegou a casa. Passou pela entrada suja e cheia de papéis no chão. Reclames de pizzarias, folhetos dos descontos do supermercado, "carne do acém" lia-se, e um número meio rasgado da "Sentinela" das Testemunhas de Jeová... O elevador estava com a lâmpada partida, continuava a não haver administrador do condomínio. Ninguém queria ser, ninguém pagava o que devia, nada era de ninguém. Mal entrou em casa, sentiu o leve cheiro perpétuo a comida, o ladrilho da cozinha gasto, um prato sujo, um copo sujo, um embrulho de batatas fritas aberto, um pacote de iogurte vazio, migalhas, tudo herança do "gótico" numa breve passagem por casa, olhou para o quarto de banho desarrumado, as toalhas deitadas ao chão pelo "gótico", uma prateleira onde o creme para a cara, o rímel, o bâton, o perfume, a pasta de dentes, a escova, lhe lembravam o terrível espelho. Chorou sozinha um pouco. Depois foi para a sala ver um DVD que tinha trazido do clube de vídeo. Adormeceu no sofá. Acordou só quando a napa a fez suar e se colou ao corpo. "O meu suor agora é este", pensou, dorida da posição, e foi dormir. Dormiu bem porque estava cansada de tanta emoção. Tanta emoção. "Heróis do mar..."
A vida de todos é agora preenchida pelo Algarve. Todos vão para o Algarve. Depois do futebol não pensam noutra coisa. Mãe, pai e "gótico". Ele, o do outro lado, já foi a Cuba, numa excursão barata, e sonha ir ao Brasil. Aprendeu umas coisas sobre o rum com que impressiona a namorada que tem. Antes de ir a Cuba não sabia o que era o rum, nem uma "Pina colada", nem de que era feita a "Cuba livre". Tinha ido uma vez ao bar do Represas, mas não chegara para aprender. Ia agora para o Algarve com a mesma "namorada" e isso entusiasmava-o. Só tinha pena de não ouvir o "professor" todas as semanas, porque assim tinha menos conversa. Não é que fosse preciso, mas ...
Ela e o "gótico" também se preparam para ir para o Algarve, embora o "gótico" hesite se não será melhor ficar pelas praias da Caparica para "curtir" e não ter que aturar a mãe. Ela vai com gosto. Andou a fazer dieta. Leu muitas revistas. Lá, no fundo, é solar. Talvez um longínquo resto do Alentejo, que fizera os seus antepassados, lhe associasse o sol com a felicidade. Espera, nos seus melhores dias, espera; nos outros, desespera.
*
Crise? Que crise? Eles que resolvam lá o assunto entre eles. A ponte não está na mesma? E eles estão?"
JOSÉ PACHECO PEREIRA
3 Comments:
Amigo Vale de Soure
Obrigado pela sua preciosa ajuda. Já está emendado.
Grande abraço.
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