sexta-feira, maio 13, 2005

Da inconstitucionalidade do artº. 175º do CP.

"Passemos, de imediato, à questão da inconstitucionalidade do artº. 175º do CP, questão onde a polémica instalada ao nível doutrinário conhece alguma dimensão, para o que se torna imperioso trazer à colação e confronto o artº. 174º, do CP..Dispõe o artº. 174º, que, quem, sendo maior, tiver cópula, coito anal ou coito oral, com menor entre os 14 e 16 anos, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.Por seu turno o artº. 175º preceitua que quem, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos ou levar a que eles sejam praticados por outrem, é punido com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias. O tipo legal do artº. 174º prevê e pune actos heterossexuais entre pessoa de maioridade e menor de idade compreendida entre 14 e 16 anos, desde que aquele abuse da inexperiência do menor; o tipo legal de crime previsto no artº. 175.º abdica da inexperiência do menor, e é nessa inexigência, em se tratando de actos homossexuais de relevo com adolescentes, praticados por maior, sendo a vítima menor de 14 a 16 anos que se vê um tratamento discriminatório na incriminação, fonte de ofensa ao princípio constitucional da igualdade. É esse tratamento distinto, a repousar unicamente na natureza do acto homossexual de relevo, que levanta dúvidas sobre a legitimidade material da incriminação, chegando até a colocar-se a questão da legitimidade do ponto de vista jurídico-constitucional (Prof. Teresa Beleza, Jornadas, I, 1996, 181 e Mouraz Lopes, in Os Crimes contra a Liberdade e Auto determinação Sexual, 98), não devendo estabelecer-se tratamento diferenciado para relações homo e heterossexuais. Assim, também, o entendimento do Prof. coimbrão Costa Andrade, in Consentimento e Acordo em Direito Penal, 1990, 396, assim, ainda, também o do Sr. Procurador-Adjunto Jorge Dias Duarte, in Homossexualidade com Menores - Artigo 175º, do Código Penal, Revista do M.P., Ano 20, Abril/Junho de 1999, 110, que vê plasmada no tipo "...uma reminiscência moralista, traduzindo ainda - mais que implícita, explicitamente - o desvalor com que a homossexualidade é, ainda hoje, encarada em certos sectores sociais".

Da obra de Karl Prelhaz Natscheradetz, Direito Penal Sexual, Conteúdo e Limites, págs. 80-81, destacamos, no mesmo tom, e a propósito, a seguinte passagem: "Um dos aspectos essenciais da moral das sociedades resultantes da civilização judaico cristã constitui no atribuir à sexualidade uma significação profundamente negativa (...) tendo a doutrina católica tradicionalmente classificado os comportamentos sexuais em "naturais e contranatura", importando reflectir até que ponto tal visão não contribuiu, ainda hoje, para a manutenção (...) do tipo legal em análise, pois que, tradicionalmente, e na nossa envolvência cultural, a homossexualidade está associada à prática de actos "contra natura ". Este desprendimento de qualquer visão moralista leva mesmo a Prof. Teresa Beleza, a propor que, no futuro, o direito penal a constituir não discrimine as relações homossexuais, nomeadamente exigindo no tipo legal do artº. 175º, também, o abuso da inexperiência do menor e prevendo que o tipo legal de actos sexuais com adolescentes também seja ele preenchido com a prática de actos sexuais de relevo, não cingidamente à cópula, ao coito anal ou coito oral, numa formulação intrasistemática, centrada num só tipo legal - cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 571. O direito penal sexual, após a entrada em vigor do CP de 82, por iniciativa do legislador, mostra-se estruturado à margem de qualquer visão moralista, próxima de uma concepção de arco alargado. A nível da homossexualidade o nosso direito penal sexual não é conservador, escreve Rui Pereira, in Sub Judice, II, 1996, 43 e segs. Tudo o que a nível de comportamento sexual não é proibido é, simplesmente, permitido, na expressão da teoria liberal de sociedade aberta, de Stuart Mill.

A interferência na liberdade individual surge, pois, na compreensão do princípio teórico, para evitar a ocorrência de dano a outrem; de acordo com tal teoria não parece que deva suprimir-se a individualidade da pessoa para garantir aos outros um aumento da sua realização pessoal. Sem, ainda, avançar solução, diremos que é ao legislador que incumbe as decisões de criminalização ou descriminalização. Tais decisões seguem de perto a evolução histórica das sociedades às quais se destinam, revelando-se estritamente condicionadas pelos dados da estrutura social, por substratos directamente políticos, pelos interesses dos grupos sociais e pelas representações axiologicamente nelas prevalentes em qualquer momento histórico, como teoriza o Prof. Figueiredo Dias, in Lei Criminal e Controle da Criminalidade - O Processo Legal-Social de Criminalização e Descriminalização - Rev. Ord. Advogados, 1976, 69 e segs.. A autonomia da criminalização ou descriminalização que cabe ao legislador é retirada ao aplicador da lei, ao simples julgador, na pressuposição de que todas as leis são justas, usufruindo aquele, apenas, do poder de recusar a sua aplicação com o fundamento de que infringem a lei constitucional ou princípios nela consagrados - artº. 204º, da CRP. Ora se o legislador elevou à categoria de elemento constitutivo do tipo a simples prática de actos homossexuais de relevo, sem exigir a inexperiência do menor, é porque assim o teve por justo e mais adequado para responder às concepções reinantes, ao momento histórico e suas exigências, não cabendo ao julgador sobrepõr-se-lhe. Em nosso ver, e respeitando entendimento em contrário, não é preciso apelar a qualquer concepção moralista, que repugna ao fautor da lei, para se enraizar, numa concepção objectiva, razão para se não exigir como elemento constitutivo do crime de prática de actos homossexuais a inexperiência do menor.

A prática de actos homossexuais de adultos com menores é na envolvência cultural de hoje, encarada, em larguíssimos sectores sociais e humanos, na esmagadora maioria dos cidadãos, objectivamente mais grave do que a prática de actos heterossexuais com menores, pelos efeitos que conduz, repercutindo aquela uma prática de menor normalidade e a última, apesar de ainda condenável, maior normalidade. Não que, e nisto se afirma a nossa discordância com o recorrente una daqueles actos sejam normais e outros anormais, o que sucede é que na gravidade objectiva entre uns e outros é possível estabelecer uma escala gradativa de violação, que pende mais desfavoravelmente para o agente do crime desenhado no artº. 175º, do CP. As experiências homossexuais de adultos com menores, independentemente da experiência sexual da vítima, são substancialmente mais traumatizantes, por representarem um uso anormal do sexo, condutas altamente desviantes, por serem contrárias à ordem natural das coisas, comprometendo ou podendo comprometer a formação da personalidade e o equilíbrio mental, intelectual e social futuro da vítima, desencadeando, também, colateralmente, efeitos danosos de um ponto de vista social, fenómenos disfuncionais em grau mais elevado, à partida, do que os actos heterossexuais com adolescentes, mesmo sem experiência sexual. O tipo delineado repercute a intolerância social aos abusos sexuais sobre menores, a função do direito penal é, então, a de agir como mecanismo de controle social, não comportando aquela disfuncionalidade qualquer espécie de implicação ética, no dizer de Amelung referenciado na obra de Karl Prelhaz Natsheradetz, pág. 116. O poder do Estado, não serve para reforço de padrões puramente morais ou religiosos. Os Governos não podem controlar comportamentos que não possuem qualquer significado especial, tais assuntos ficam melhor confiados à religião, à educação e a outras influências sociaisSe é certo que ao legislador falha em absoluto, no dizer de Roxin, legitimidade para punir condutas não lesivas de bens jurídicos, apenas em função da imoralidade, outrossim deverá o direito penal intervir na punição das condutas sexuais que mais gravemente atentem contra a liberdade sexual do ofendido ou a sua autodeterminação, privando-o da disposição de um dos aspectos mais intimamente ligados à sua auto-realização pessoal, como é a sua actividade e liberdade sexual - cfr., ainda, Karl Prelhaz Natsheradetz, op. cit., 141.

A figuração do tipo responde às mais profundas exigências de repressão criminal na matéria e traduz a mais correcta opção e rumo de política legislativa face às concepções sociológicas que não correm de feição em vista de um abrandamento punitivo sustentado, sem fundamento, pelo arguido.IX. Quando no artº. 13º nº. 1, da CRP se preconiza que todos os cidadãos tem a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, não se trata de firmar um qualquer igualitarismo. É, antes, igualdade, proporcionalidade. O princípio exige que se tratem por igual situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionando justiça. O princípio, como é entendido sem discrepância, não proíbe que a lei estabeleça distinções, veda, isso sim, o arbítrio, proibindo as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem justificação razoável, sem fundamentação aparente, visível.Proíbe que se tratem por igual situações dissemelhantes e a discriminação com base em diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas.Fora disso, respeitados estes limites, como o TC, no seu Ac. de 9/2/88, in BMJ nº. 374, 144, doutrinou que o legislador goza de inteira liberdade, por isso na situação que nos ocupa, ressalvando opinião contrária, o legislador ao diferenciar, nos tipos legais em confronto, actos substancialmente distintos, repetimos actos heterossexuais e homossexuais, de adultos com menores de idade compreendida entre os 14 e 16 anos, age em conformidade constitucional, respeitando o princípio, ao configurar tipos legais diferenciados nos seus elementos constitutivos, sem discriminação dos actos homossexuais.

O legislador, ao proceder assim, não estabelece diferenciações sem fundamento material bastante, de forma irrazoável, movido por injustificada e arbitrária razão, antes trata de forma desigual à luz de um padrão objectivo o que o deve ser, e que são as relações homossexuais de relevo de pessoa maior com menores de idade entre os 14 e 16 anos, quando comparativamente com actos entre pessoas de sexo diferente, entre menores de 14 e 16 anos e maior. Na clivagem jurídico-penal a que se assiste não deixa de ser actuante, igualmente, o conhecimento de que é mais livre e prematuro o consentimento dos adolescentes para a prática de actos heterossexuais, sendo mais tardio o processo genético de formação de vontade de adesão dos adolescentes para a prática de actos homossexuais.Até mesmo para alguns autores o exercício da sexualidade entre menores pode afectar o livre desenvolvimento da respectiva personalidade e produzir alterações importantes sobre a sua vida futura e seu equilíbrio psíquico, embora se perfilem posições opostas, como nos dá nota Muñoz Conde, in Derecho Penal - Parte Especial, 11ª ed. 117.Improcede, também, a invocada inconstitucionalidade material do artº. 175º, do CP, cuja desaplicação se intenta."

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

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