sábado, julho 07, 2007

A inversão.

"Num texto de Paolo Mancini na Revista italiana RESET (n.101, Maio/Junho, 2007) é referido que John Thompson tinha usado a metáfora do “panoptikon” de Jeremy Bentham para “explicar que no centro da prisão ideal desenhada pelo filósofo inglês já não estava a sentinela que, graças às duas janelas colocadas nas paredes opostas das celas dos braços concêntricos da prisão, podia controlar sozinha todos os prisioneiros. Hoje a relação inverteu-se, diz Thompson: na torre está o poder e todos os prisioneiros podem observá-lo. Os prisioneiros somos todos nós, podendo controlar continuamente o poder graças aos olhos dos “media”.

A metáfora é perfeita, mas há que dizer que, produzindo-se a inversão, se alteram as próprias posições: prisioneiro é o poder e sentinelas somos todos nós, através dos “media”. A coisa parece linear, mas, bem vistas as coisas, não o é. Não existe simetria perfeita. Se a sentinela podia ver directamente, sem mediações, os prisioneiros, já o mesmo não se verifica com a observação do poder pelos cidadãos. Se a simetria fosse perfeita, os prisioneiros (ou melhor, os cidadãos) poderiam ver e controlar directamente o poder. Mas acontece que a visão, neste caso, não é directa, mas sim indirecta ou mediada. Precisamente: mediada. Os “media” chamam-se assim porque essa é a sua função: mediar. Se é verdade que a simetria, no ‘panoptikon’, se verifica, também é verdade que dela não faz parte o cidadão, mas sim os “media”. Ou seja, não se trata de uma simetria perfeita, porque a relação entre o poder e o cidadão não é directa. Onde deveriam estar os cidadãos ficaram os “media”.

Mesmo quando parece que a relação de controlo é directa, como acontece na informação televisiva, a verdade é que continua a verificar-se uma mediação. A mediação do olhar do “Cameraman”, a selecção do enfoque, a escala de grandeza, etc., etc.. A inversão de que estamos a falar não se verifica, pois, entre o cidadão e o poder, mas sim entre os “media” e o poder, produzindo uma perda de poder na instância política, na medida em que “ver é poder”. Naturalmente que numa simetria perfeita esta perda de poder seria compensada por um equivalente reforço do poder por parte do cidadão, uma vez que o poder (a política) tem horror ao vácuo. Só que este poder passa da instância política para os “media”, tornando-se residual a quota de poder directo obtida pelo cidadão.

Ora, a transferência de poder da instância política para os “media” tem vantagens, mas também tem desvantagens. Vantagem, por exemplo, é que este poder passe para a sociedade civil. Desvantagem é que este poder transferido não possa ser sancionado pelo cidadão como acontece com o poder político de origem electiva. O grande equívoco que se verifica nas sociedades modernas consiste precisamente nisto: confundir os destinatários da transferência deste poder, ou seja, os “media” com o cidadão.

É precisamente porque estamos perante uma espécie de “concessão” deste poder transferido que se põe o problema da sua regulação, o problema dos códigos deontológicos, da ética e da responsabilidade dos “media”. Questão tanto mais importante quanto estes mesmos media tanto podem ver e controlar o poder de origem electiva quanto podem ver e controlar o próprio cidadão, afinal, destinatário remoto da transferência do poder.

O que acontece é que esta transferência do poder para os “media” os torna centrais no processo de controlo social, ao mesmo tempo que não disponibiliza mecanismos sancionatórios equiparáveis aos mecanismos electivos. A verdade é que, para além da lei geral, os verdadeiros mecanismos de regulação ou de auto-regulação pertencem sobretudo à esfera da ética, não representando também o mercado garantia suficiente como mecanismo sancionador. Mesmo conjugando mercado com códigos éticos e com poder sancionatório da lei geral, mesmo assim, não é comparável o poder que resulta desta conjugação com o que resulta do voto. O destino do poder transferido de que estamos a falar não é, pois, linear nem simples, uma vez que atinge directamente o coração da democracia representativa. Por isso, merece uma profunda reflexão o uso, pelos media, deste poder transferido funcionalmente, mas não decidido e delegado politicamente.
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João de Almeida Santos

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