terça-feira, maio 27, 2008

PARA A BIRMÂNIA E EM FRAQUEZA!

"A história é a seguinte: no seu blogue, a dra. Ana Gomes escreveu um apelo à intervenção humanitária na Birmânia; aqui no DN, eu comentei o apelo; também no DN, a dra. Ana Gomes respondeu ao meu comentário. Tudo civilizado, tudo digno. A terminar, gostaria de esclarecer só dois ou três pontos.

Primeiro, a dra. Ana Gomes acusa-me de "desvalorizar o sofrimento dos birmaneses". Decerto deixou-se influenciar pelo meu escasso optimismo. É compreensível. Dado que não alimento crenças na bondade panfletária, não atafulhei o texto com invocações de esperança ou lamentos de pesar. Porém, juro: se me garantissem que cada palavra indignada salvaria a vida de um birmanês e abalaria aquele tenebroso regime, eu preencheria mil páginas com gritos de "Basta!". Por incrível que pareça, também a mim me ofende a dor alheia. Não acho é que confessar a ofensa de dez em dez minutos ajude alguém.

Mas chega de falar de mim. Em resumo, e com o cuidado de usar as palavras da eurodeputada, a dra. Ana Gomes defende uma intervenção na Birmânia, uma "vaga pacífica, desarmada, de agentes humanitários e jornalistas, sem esperar autorização da Junta [os tiranos locais] ou do Conselho de Segurança". O processo é linear: a "urgentíssima" e "desarmada" vaga entra no país, ajuda os desvalidos e, de caminho, promove "o fim do isolamento do país", circunstância que "ditará inexoravelmente o fim do regime" (um "tigre de papel", para a dra. Ana Gomes) e o advento da democracia.

Não discuto o princípio que a dra. Ana Gomes invoca: a "responsabilidade de proteger", conceito recente que dá à ONU o direito de afrontar a soberania dos estados a fim de auxiliar populações em risco. Muitos já o discutem. Ninguém o aplica, visto que o Conselho de Segurança não é consensual quanto aos estados que podem ver a soberania afrontada e, logo, não aprova o envio de forças militares (bastante úteis na hora de convencer ditadores reticentes).

Na versão oficial, a "responsabilidade de proteger" é polémica e, como se verificou em algumas das intervenções precursoras do conceito (na Somália e no Ruanda, por exemplo), de resultados duvidosos. Na versão da dra. Ana Gomes, a "responsabilidade de proteger" é outra coisa, um sonho idílico que dispensa armas e a observação da realidade.

Eis a realidade: sem o aval da Junta ou sem um contingente bélico que compense a falta de aval, as ONG e os jornalistas não penetram a Birmânia em número relevante. Com autorização, que agora talvez tenha sido concedida, é possível que penetrem, a fim de ser alvo de saques (há relatos dos saques) e, na melhor das hipóteses, de auxiliar uns tantos desgraçados. Não é mau. Não é "inexoravelmente" o fim do regime. Um exército de 400 mil homens não recua perante a disposição altruísta de voluntários das ONG e repórteres. E invocar o "ódio que os birmaneses de diferentes etnias têm aos opressores" apenas constata uma evidência. Décadas de ditadura provam que o pormenor de os oprimidos não apreciarem os sujeitos que os oprimem não anula a opressão. Geralmente, quem manda possui argumentos mais decisivos do que quem obedece, uma desproporção de meios que a "invasão" pacífica proposta pela dra. Ana Gomes não promete alterar.

A dra. Ana Gomes supõe que a ingerência sem coerção conduz à mudança política, quando de facto se entrega na dependência dos políticos que a senhora deseja erradicar. Eu sinceramente espero que do dilema saiam benefícios duradouros para milhões de birmaneses. Sinceramente, espero sentado. E aproveito para pedir desculpa: ao contrário do que antes insinuei, a generosa solução da dra. Ana Gomes não legitima comparações com o Iraque nem com país nenhum, excepto o das Maravilhas
."

Alberto Gonçalves

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