terça-feira, março 09, 2004

Uma "Justiça ?

Ou as novas divindades portuguesas

Com os últimos acontecimentos à volta do caso Casa Pia, e mais recentemente com o triste espectáculo a que todo o país assistiu com uma libertação efêmera de Vale e Azevedo, a população portuguesa passou a aperceber-se melhor de como funciona o sistema judicial português.

É certo que o que agora é visível, já que de figuras públicas se trata, sempre existiu para os cidadãos anónimos.

Mas o mérito de agora se tratar de figuras públicas é exactamente aquele que permite assistir a uma prepotência autoritária muito pouco própria da países onde vigora um estado de direito efectivo, e onde o simples respeito pelos direitos humanos obrigaria a um Código de Processo Penal mais célere, a investigações que com mais e melhores meios permitiria chegar a conclusões mais rápidas e sem prejudicar, quer a eficácia da investigação, e o que é mais, não prejudicar a vida dos suspeitos, que nunca é demais recordar, são sempre inocentes até prova em contrário.

Por isso, por serem considerados inocentes é que é necessário agilizar os processos, para que as pessoas suspeitas de um crime não passem demasiado tempo sob a infame suspeita de um crime que em última análise o Estado presume que não lhe é imputável até prova em julgado.

Se compararmos o nosso ritmo judicial com o da Suécia, sobre a detenção e início do julgamento do assassino da ministra dos negócios estrangeiros daquele país, ou o que se passou em termos de detenção, acusação e início do julgamento de Michael Jackson nos EUA podemos apercebermo-nos melhor da morosidade exasperante do nosso sistema judicial.

E como disse Pacheco Pereira, insuspeito de simpatizar politicamente com alguns dos arguidos da Casa Pia, permanece 30 anos após o 25 de Abril, uma cultura de prepotência por parte do poder judicial

A responsabilidade que cabe ao poder judicial, por força da independência deste em relação ao poder político e a quem o constitui (magistrados do Ministério Público, procuradores e investigadores) não os inibe de se deverem comportar como pessoas de bem.

Já não estamos no tempo dos tristemente tribunais plenários constituídos pelos juizes desembargadores afectos ao Estado Novo que tornavam judicialmente aceitáveis o que era política e civilmente inaceitável em termos de perseguição aos opositores da ditadura.

Nem sequer estamos no tempo em que os arguidos eram tratados pelas alcunhas ou por “tu” pelos procuradores e juizes, como forma de amesquinhamento público e pessoal dos arguidos ou réus.

À defesa dos arguidos em qualquer processo devem ser lealmente dadas todas as hipóteses para que a defesa seja eficaz, sem naturalmente inibir a eficácia da acusação.

E os recursos sucessivos que muitas vezes têm servido para atrasar mais ainda o que já é infelizmente lento, torna os processos judiciais extremamente morosos, com prejuízos para os arguidos e réus e para o prestígio do próprio poder judicial.

Uma cultura humanista, digna de um estado de direito pleno não se coaduna com os acontecimentos que se tem assistido ultimamente.

Os arguidos, simples suspeitos ou já réus, são cidadãos e como tal têm que ser tratados pelas partes envolvidas no processo.

Tristes acontecimentos como o de um juiz de 1ª instância antecipar propositadamente uma revisão de medida de coacção para inviabilizar o recurso pendente na Relação, e a forma leviana como essa antecipação foi encarada pela mesma Relação, negando na prática esse direito constitucional, ou o triste episódio público da libertação por breves segundos de um arguido para que perante a família e com as malas na mão retornar apressadamente ao estabelecimento prisional onde estivera não dignifica o juiz, nem o MP, nem a Justiça de um país do espaço europeu e do século XXI.

É contra toda esta cultura autoritária, justicialista e impune que todos temos que lutar.

A classe política não pode ser imune nem insensível ao que se passa.

Cabe a ela mover-se para que todo o sistema judicial mude, se reforme, e que finalmente o MP e juizes de instrução sem prejuízo para a sua independência possam ser mais responsabilizados pelos erros judiciais que praticam ou pela inumanidade que levam a cabo.

Mesmo que teoricamente se possa concordar com a ideia expressa por Jorge Sampaio, de que estes assuntos não devem ser tratados a quente, o que na prática deixará para as calendas o início de uma reforma profunda na justiça, nos meios que deve ter para funcionar eficaz e céleremente, mas principalmente pela defesa do bom nome dos acusados e dos presumíveis inocentes.

Porque MP e poder judicial em geral, apesar de independentes não são divinos, não estão acima da justiça e da sociedade dos homens.

Nem os juizes ou o Conselho Superior de Magistratura se pode comportar como sendo beneficiados por qualquer poder de inspiração divina ou gozam do mito da infalibilidade.

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