segunda-feira, abril 26, 2004

Dois 25 de Abril.

Uma versão interessante do 25 de Abril, dada pelos ilustres colegas do Blog Blasfémias:


"Existem, pelo menos, dois 25 de Abril: o mítico e o histórico.

O 25 de Abril lendário conta-nos a odisseia de um punhado de bravos militares, que enfrentando uma tirania sangrenta e uma ditadura de ferro, em nome da santa liberdade e da mais pura democracia, destemidamente a enfrentaram e derrubaram. Fala-nos da falta de liberdade política, da censura, das prisões políticas, e contrapõe-lhes um regime de tolerância e democracia, que a revolução florida teria implantado.


Ora, o 25 de Abril histórico desmente cabalmente esta versão dos factos.

Desde logo, na natureza do regime deposto: não se consegue compreender, por mais distraída que seja a alma portuguesa, que uma tirania com aquelas características não tenha dado, como não deu, um tiro em sua defesa.
Como, também, não foge à verdade lembrar que não se implantou a democracia em Portugal naquela data. Pelo contrário, foram proibidos inúmeros partidos políticos (o Partido da Democracia Cristã, o Partido Social Democrata Independente, o Partido Liberal, o Partido do Progresso, o MRPP) e presos muitos dos seus dirigentes, sem qualquer acusação ou indícios da prática de crimes, que não fossem políticos. O CDS escapou por pouco e os seus congressos e comícios, com os do então PPD, eram atacados por energúmenos agitados pelo Partido Comunista e pela «vanguarda da revolução». A Rádio Renascença foi atacada, a comunicação social nacionalizada, ficando nas mãos do Partido Comunista e da extrema-esquerda. A «lei Jesuíno» (lembram-se?) tentou repor a censura e ninguém podia escrever ou falar contra o socialismo, sob pena de ser perseguido, despedido ou mesmo preso, como o foram milhares de pessoas. As redacções eram controladas ferreamente e até uma revista de humor, a «Gaiola Aberta» de José Vilhena, esteve suspensa por delito de opinião.

Muitos pides foram presos durante mais de dois anos sem serem ouvidos por autoridades judiciais, à semelhança do que tinham feito anteriormente. Por maiores que fossem os crimes que tivessem praticado, o que distingue em primeira linha um regime democrático de uma ditadura é a natureza moral do primeiro, que não utiliza nunca os instrumentos da segunda. Mesmo e sobretudo, quando estão em causa os seus adversários e inimigos. Como foi presa inúmera gente que nunca pertencera à PIDE ou à DGS, ou tão-pouco que tivesse funções políticas de especial relevo no regime deposto, libertada meses depois sem uma reparação, uma explicação ou um pedido de desculpas. Os exilados em Espanha e no Brasil foram às centenas.

De resto, à PIDE/DGS sucedeu uma polícia política bem mais temível, porque tentou agir «revolucionariamente», sem sequer se preocupar com aparências legais, ainda que eventualmente reduzidas. Foi o famigerado COPCON do major Otelo, eregido revolucionário romântico, poeta armado, Fidel de Castro da Europa. Cabotino, vaidoso, imbecil, Otelo Saraiva de Carvalho só não mandou os «fascistas» para o Campo Pequeno, onde lhes daria o tratamento que imaginamos, porque a resistência popular fê-lo, por amor à pele, pensar duas vezes. Tentaria repetir a «graça» alguns anos depois, com as FP-25.
Também sabemos, de há muito, que o Partido Comunista tinha listas de fuzilamentos elaboradas, às quais só não deu andamento pela resistência que lhe foi oferecida, sobretudo no norte de Portugal. Ainda hoje Arnaldo de Matos, que não era propriamente um «pide» ou um fascista, o recorda. Parece que também figurava nela.

Por outro lado, a democracia política tardou um ano e meio depois da revolução para timidamente se mostrar. As tentativas de adiar as eleições constituintes foram mais do que muitas, como se sucederam os governos provisórios atè às primeiras eleições legislativas. Os pretorianos do regime, instalados no «Conselho da Revolução», só foram afastados de um poder que exerciam sem legitimidade democrática, pela revisão constitucional de 1982, pela força do Estado de direito, contra a força bruta da ameaça das armas e dos quartéis. Até essa data, durante oito longos anos, o poder democraticamente eleito foi censurado, controlado e diminuído por um bando de capitães arvorados em pais da pátria, que se achava no direito de dizer o que era e não era conforme à Constituição, ao regime e à sua esclarecida visão de democracia de caserna.
A democracia sindical também tardou, e a nefasta CGTP-Intersindical, apoiada no Dr. Cunhal e no seu partido, pretendiam que o pluralismo sindical fosse uma traição à classe operária e, como tal, interdito por lei.

Por fim, façamos uma referência à liberdade económica, pura e simplesmente inexistente no pós-25 de Abril e nos anos que lhe seguiram: nacionalizações, ocupações, reforma agrária, colectivismo e o fim da propriedade privada como paradigma a alcançar. Nas empresas sucediam-se os despedimentos selvagens, promovidos por delegados sindicais e comissões de trabalhadores dominadas pelo Partido Comunista, onde esbirros e «democratas» de última hora, apontavam a dedo, perseguiam, humilhavam e despediam, quem muito bem lhes apetecia, sob a acusação de «fascismo». Foi, neste Portugal mesquinho que de há muito nos tornámos, o momento alto para o esplendor da miséria humana, em que a falta de carácter e de rectidão fez de delatores do passado, os delatores desse presente, e deixou vir ao de cima os instintos mais baixos de gente reles e rasteira. Como sucede quase sempre nos momentos ditos revolucionários.

Por tudo isto há que dizer que o que hoje se comemora é um logro da História.
O 25 de Abril foi uma reacção corporativa dos oficiais menores do exército português, que não queriam continuar a guerra de África. Era-lhes indiferente a implantação da democracia que, de resto, nem sabiam bem em que consistia, como os factos vieram a demonstrar. Ancorados nos generais, em vaidosos úteis como Spínola, Costa Gomes, Galvão de Melo, há muito tempo à espera do seu «momento histórico» para o qual não tinham, como se demonstrou, nem capacidade, nem categoria, gente que nunca controlou verdadeiramente coisa nenhuma na revolução e que, à primeira oportunidade, foi lançada «borda fora» e só não foi dizimada porque fugiu para o estrangeiro, os «capitães» derrubaram um regime político velho, podre e verdadeiramente patético e indefeso. Por isso mesmo, como faria notar o Senhor de La Palice se ao tempo fosse vivo, o regime não se defendeu. A «sangrenta ditadura» era mais uma dentadura gerontocrática em putrefação adiantada, dirigida por professores universitários em licença sabática para se dedicarem à política e ao governo, que se sustentava na imagem fantasmagórica de Salazar, cujos botins tinham engraxado durante décadas, e nalgumas chefias militares em manobras ultramarinas.

Do ponto de vista da História, da História grande e verdadeira, o 25 de Abril serviria para a União Soviética manipular alguns «revolucionários» de ocasião e deitar mão aos territórios africanos, que escravizou, roubou e onde condenou milhões à morte, à miséria e ao sofrimento. Que permanece ainda hoje, no trigésimo aniversário da revolução. Dizer que o 25 de Abril foi uma «revolução sem sangue» é uma piada de humor negro. Stricto sensu.

Contudo, as coisas poderiam ter sido diferentes, se se tivesse deixado a nova geração de políticos lançada por Marcello Caetano, chegar com naturalidade ao poder e fazer o que inevitavelmente faria. Como sucedeu em Espanha com os democratas-cristãos e liberais de Adolfo Suarez. Como sucederia em Portugal com homens como Mota Amaral, Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Amaro da Costa, Pinto Balsemão, Magalhães Mota, Xavier Pintado, em suma, com a geração de trinta anos, a iniciar a sua aproximação ao poder, ao qual acabariam por ascender tardiamente e com uma revolução de permeio. Eles teriam promovido, como em Espanha, as reformas democráticas necessárias, teriam descolonizado o ultramar sem o entregarem à influência soviética, e poderiam ter-nos poupado ao descalabro económico que se seguiu e ao pluripatético espectáculo da democracia de caserna que hoje comemoramos. Todos teríamos ganho com isso e agora o dia 25 de Abril poderia até ser um dia respeitável. "

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