quinta-feira, abril 29, 2004

Imitar a revolução

O «25 de Abril» foi feito porque o Exército, digo bem, o Exército (a Força Aérea e a Marinha não passaram de pequenos comparsas) não queria e, em certa medida, não podia, continuar a guerra. Não vamos discutir as razões (corporativas, demográficas, diplomáticas) deste facto, mas subsiste que ele esteve na origem de tudo. Os «capitães» (patente genérica) que se pronunciaram contra a ditadura (do pronunciamento falaremos depois) não tinham um plano, ou sequer uma ideia, para o país. Normalmente pouco educados, se pensavam no assunto, era para partilhar os lugares-comuns «socializantes» da oposição urbana e estudantil. Por si só, o famoso «Programa do MFA», incoerente e sumário, revela bem o vácuo para que se empurraram os portugueses, tanto aqui como em África. Por um lado, prometia eleições. Por outro, a «reforma agrária» e «uma estratégia antimonopolista», dois pontos cruciais, retirados da vulgata do PC. Suponho que à altura se tratava principalmente de angariar o apoio ecuménico da Esquerda e Centro-Esquerda contra a putativa resistência do regime. Como a seguir se constatou, ninguém mediu com seriedade, ou sensatez, as prováveis consequências do «Programa». A irresponsabilidade, típica entre militares, reinava. Pior ainda: como não se podia decentemente pôr um capitão ou um major à frente do Estado, o MFA entrou numa aliança indefinida com o general Spínola e o general Costa Gomes. Megalómano e autoritário e, além disso, ignorante, Spínola «escrevera» um livro (de facto escrito por oficiais da sua confiança), o Portugal e o Futuro, em que propunha uma «Comunidade Lusíada» ou coisa assim, e em que velhos preconceitos (do tipo: o nosso preto é nosso amigo) se misturam a uma inconcebível imprudência e à mais vertiginosa estupidez. Logo do princípio existiram, portanto, dois programas, um pior do que outro, e duas facções. Faltava «sair» e estabelecer o caos.

A «REVOLUÇÃO»

A «revolução de Abril», como romântica e fraudulentamente lhe chama a Esquerda, foi um mero pronunciamento clássico. Para quem não saiba: uma unidade ou grupo de unidades declara a sua oposição ao governo do dia (geralmente, mas não necessariamente, ocupando alguns lugares de importância estratégica - estradas, pontes, praças, portos, aeroportos, telégrafo, telefones, rádio, televisão e por aí fora) e, a seguir a esta desobediência activa, espera para ver o que decidem as forças militares fora da conjura. Se estas não marcham em massa contra os insurrectos, se não se mexem ou se aderem, o «golpe» ganhou. Manda a tradição que não haja violência. O pronunciamento é, como se dizia, um exercício de «contar espingardas». Quase nenhuma espingarda se apresentou a defender Caetano e as que apareceram, examinada a situação, retiraram em paz. Só a Guarda Republicana, aqui e ali, resistiu algum tempo; não muito e não muito convictamente.

Verdade que em Lisboa o «povo» veio desde o começo para a rua aplaudir as tropas e que esse apoio cresceu com a certeza da impunidade. E verdade também que, uma vez consumada a derrota do regime, houve por Portugal inteiro manifestações de grande entusiasmo e extraordinária dimensão. Isto, de certa maneira, legitimava o «golpe» contra uma ditadura, a que o país tinha um ódio tão universal e tão violento. Não legitimava mais nada. Como não legitimava nada, o assalto, inaugurado a 26 de Abril, a toda a espécie e género de autoridade, ligada ou não ao regime, que nos primeiros meses chegou espontaneamente a inimagináveis proporções. À sombra do Salazarismo e do Caetanismo viviam e cresciam mil tiranias diversas. O ajuste de contas era inevitável (e não deixou, em parte, de ser salutar), mas também não permitia que se tirasse dele qualquer conclusão política. Infelizmente, o MFA, já «aconselhado» pela Extrema-Esquerda, pelo PC e até pelo PS, resolveu arrogar para si, na única base da efervescência popular, uma fiança metafísica, com a designação absurda de «legitimidade revolucionária», com que durante anos justificou o seu poder absoluto e arbitrário. A revolução, propriamente dita, nunca existiu. Existiu, a partir de 28 de Setembro de 1974, uma tentativa, conduzida pelo Partido Comunista, para tomar conta do Estado e estabelecer pela força em Portugal um regime soviético, de que no seu lugar se tratará.

A DESCOLONIZAÇÃO

Para começar, convém esclarecer um equívoco hoje comum: apesar da propaganda jacobina e da pregação salazarista (o célebre mapa da Europa com as colónias sobrepostas), o nacionalismo português jamais verdadeiramente incluiu o império de África. Em 1910, a população branca em Angola e Moçambique andava por 15 000 pessoas; no fim da Segunda Guerra por 70 000. Só em meados da década de 50 e principalmente quando começou a guerra é que os números subiram. Os portugueses não emigravam para África. Emigravam para o Brasil e, a seguir, emigraram para a Europa. Para países ricos, não para países pobres. Como se compreenderá. O que, juntamente com a crónica miséria da «metrópole», teve dois consideráveis resultados. Por um lado, a colonização portuguesa, que durou de facto vinte anos (de 1955 a 1974), não chegou para criar em Angola e Moçambique (e menos na Guiné) uma sociedade moderna ou semimoderna, capaz de se autogovernar. E, por outro lado, os portugueses, a quem a ditadura obrigava a defender o império, não o estimavam e mesmo gostariam de o perder. Assim, sem colonização, a descolonização estava sempre condenada a ser um desastre e os portugueses assistiriam sempre, como assistiram, com indiferença a esse desastre.

O MFA nascera para impor o abandono imediato de África. A «liberdade», a democracia e o socialismo real ou irreal eram, se eram, corolários desse objectivo e ocupavam na cabeça dos «capitães de Abril» um lugar remoto e obscuro. Spínola, na sua perpétua inconsciência, ainda tentou impor a «Comunidade», que tão laboriosamente congeminara, e até desceu a discursar às tropas, certamente estupefactas, sobre as pseudoglórias de Marracuene e Magul. Mas Spínola não tinha peso militar e em Julho, no essencial, perdera. Não podia senão perder. O exército no terreno não esperara um minuto para se render e já em Maio, da Guiné a Moçambique, confraternizava aliviada e ardorosamente com o inimigo.

Neste clima, negociar era impossível, porque era claramente inútil. Não se negoceia depois da derrota e essa fora consumada. Restava combinar, e apenas combinar, a entrega de África aos vários «movimentos de libertação», mesmo sabendo que eles não controlavam nada, nem ninguém. Não existia alternativa, excepto evidentemente a de entregar Portugal à Extrema-Esquerda, ao PC e aos «capitães», para garantir que, ele também, seria destruído. Mas, nesta altura, é bom lembrar que o MFA gozou do apoio unânime do país. Não me refiro aos slogans pleonásticos que se escreviam nas paredes. Lembro que não se ouviu um protesto, uma crítica, o mais vago lamento. Para espanto dos que não o conheciam bem, o país mostrou com um silêncio clamoroso que não queria a guerra e que não queria a África. E que não dispensava a menor solidariedade ou compaixão aos brancos que, para seu mal, lá viviam. Nos negros nem pensou.

AVENTURAS DE SPÍNOLA

No Verão de 1974, a insurreição contra a autoridade mudou de carácter e começou a ser obviamente dirigida pelo PC e pela Extrema-Esquerda e a atingir, além do Estado (e daquilo que dele dependia), empresas privadas, fundações (como a Gulbenkian), a propriedade urbana, a propriedade rural (no Ribatejo e no Alentejo), a banca e os seguros. Spínola, então Presidente da República, e a Junta de generais que o acompanhava não tinham maneira de parar isto. O Governo era um apêndice sem força, nem prestígio. Os partidos, excepto o PC, ainda na infância, não contavam. E o MFA (por razões que se explicarão) incitava o tumulto, em vez de o limitar.

A única maneira de estabelecer alguma ordem neste caos crescente era criar uma legitimidade superior à legitimidade «revolucionária» de que o MFA se reclamava. Era simplesmente e, por outras palavras, fazer eleições. Mas, se o «Programa» do MFA prometia eleições para uma futura Constituinte, agora os perigos de uma consulta formal à cidadania (e não ao «povo» que berrava na rua) e do que essa Constituinte viesse a decidir estavam à vista. Se a Direita ganhasse, afastaria fatalmente o MFA de cena e não trataria com brandura os fautores da descolonização e do «levantamento» interno. A ruína (em África) de interesses materiais de peso, 800 000 brancos sem destino, o assalto ao Estado e a devastação da economia interna não se podiam esquecer ou perdoar. Em Agosto, o medo entrou, para ficar, na política portuguesa. O medo do conservadorismo indígena, abalado como nunca na história; o medo dos larguíssimos milhares de voluntários da «revolução», sobre quem pesava a eventual vingança da gente que haviam humilhado ou liquidado; e, acima de tudo, o medo do MFA. O medo, muito mais do que qualquer ideologia ou plano consciente, iria dali em diante determinar a acção à Esquerda e à Direita. Sem perceber esta realidade básica, não se percebe muito.

Spínola resolveu cortar o mal pela raiz, como quem comanda uma operação na Guiné. Do alto da sua inenarrável arrogância, o problema parecia elementar. Primeiro, provocava a sua eleição para Presidente da República: um Presidente com poderes sem limite, que disporia do exército, da GNR e das polícias. Depois, fabricava diligentemente uma Constituição a seu gosto e medida. E, por fim, posto o «povo» no seu lugar, referendava a Constituição. Esta manobra presumia a total passividade da Extrema-Esquerda, do PC e do PS e também que o MFA se deixaria pacificamente imolar. Não admira que as coisas não corressem bem. Falhou uma tentativa ingénua de usar o Governo para os preliminares, de que Sá Carneiro foi em parte responsável e que, na prática, só serviu para remover o Governo (o I Provisório) e dar lugar a outro (o II), presidido pelo coronel Gonçalves, de futura fama. Cortado este caminho, Spínola apelou directamente ao país. A «maioria silenciosa» devia manifestar o seu desejo de ordem e o seu horror ao comunismo e ele, em resposta, convocaria (sem autoridade) a imediata eleição do Presidente. Era a velha ideia de opor a «rua» moderada à «rua» revolucionária. Mas, por enquanto, a «rua» moderada, pouco inclinada a melodramas, ficou tranquilamente em casa e a loucura culminou com uma patética tourada no Campo Pequeno. O miguelismo, sempre o último recurso da Direita portuguesa, encontrava o espírito «moço de forcado» para salvar a Pátria com meia dúzia de nacionalistas, neofascistas, filhos-família e os basbaques do costume. O espectáculo não impressionou o MFA, que prendeu uma centena de pessoas (por um puro motivo político) e na cadeia deliberadamente as maltratou. Spínola, esse, saiu logo de cena com um discurso apocalíptico. O MFA seguiu para a Esquerda, em direcção ao PC. A hipótese de casamento andava no ar.

O MOMENTO DE ÁLVARO CUNHAL

Retrospectivamente, parece impossível como não se percebeu desde o princípio a estratégia de Cunhal. O desembarque no aeroporto da Portela (que vi sem ver) foi uma cópia fiel (e, de resto, encenada) do desembarque de Lenine na estação da Finlândia. O rápido desenvolvimento do partido, com uma política de «porta aberta» para quem fosse útil, era um exercício de manual. A conservação da CDE, agora supérflua, cumpria a regra de «unir» para mandar. A eficiência e rapidez com que o partido tomou conta dos sindicatos vinha nos livros. Como vinha nos livros a necessidade da «Aliança Povo-MFA», na verdade PC-MFA, para infiltrar e eventualmente dominar o exército. E, por último, lá estava a receita universal de uma outra aliança, a aliança operário-camponesa, no caso um ersatz que a ocupação do Estado, a «reforma agrária» e as nacionalizações deviam tornar «realidade». Contra os conselhos do poder soviético (ou, pelo menos, da sua ala mais sóbria), Álvaro Cunhal queria mesmo repetir em Portugal a revolução de Outubro e, é permitido suspeitar, não se achava muito inferior ao mestre.

Este programa, que parece impraticável, tinha no entanto uma grande vantagem: só ele oferecia, à superfície, uma absoluta segurança ao MFA e uma carreira aos seus cabecilhas. O MFA, convém repetir, vivia no medo da retribuição. Demolir Spínola e a Direita política, sobretudo aquela Direita política, não garantia nada. Se não se arrasassem as forças que dominavam a economia, tarde ou cedo uma nova Direita fundaria o seu regime e tarde ou cedo o MFA pagaria com a obscuridade e a miséria (e até talvez, muito «legalmente», com a cadeia) a sua espécie de «libertação». Para sobreviver, o MFA precisava de enterrar o mundo velho. E mais: precisava de preservar indefinidamente o seu poder. Os «capitães» não descobriram isso depressa. Não compreenderam à partida o significado e o alcance do abandono de África. Nem sequer pressentiram a infalível queda do antigo regime e até houve uma altura em que, para evitar sarilhos, se tentaram entender com Caetano. Aceitaram o «programa» do MFA como quem aceita uma formalidade. E, no Verão de '74, ainda alguns se inclinavam para Sá Carneiro. A necessidade é que os trouxe ao PC. Porque o PC oferecia a tábua rasa; e porque, como eles, não queria eleições.

Em Janeiro de 1975, a revolução de Álvaro Cunhal estava a caminho. Os «saneamentos» continuavam com entusiasmo e, agora, com método. O partido controlava ministérios, controlava câmaras, controlava quase toda a imprensa, a televisão e a rádio. Através das «comissões de trabalhadores» (outra figura clássica), conseguia estabelecer um clima de intimidação em centenas de empresas, que, por seu lado, os sindicatos levavam lentamente à parede. E, como sempre, a «inteligência» indígena proclamava como glória a sua vassalagem ao poder do dia. Felizmente, a estratégia de Cunhal tinha dois pontos fracos, de que ele não se apercebeu; ou que o exemplo de Lenine (como a versão soviética o apresentava) não permitia considerar.

Em primeiro lugar, a base social e geográfica da presuntiva revolução era estreita. Geograficamente, o território comunista não ia além da grande Lisboa, do vale do Tejo e do Alentejo (o velho território do jacobinismo). Um exame dos movimentos de Cunhal em '74 e '75 mostra que ele quase nunca passou a sua fronteira. Este limite, no entanto, não decidia tudo. Com pouco mais do que isso, Afonso Costa dominara o país pelo terror e Lenine partira, em proporção, com muito menos. Socialmente, também o PC se reduzia aos «trabalhadores» e a uma modesta parte da pequena-burguesia. Na «rua» faziam com certeza uma enorme impressão. Mas Cunhal, com trinta anos de cadeia e de exílio, vivia em 1940 (como o Rumo à Vitória claramente prova) e não vira, ou registara, a transformação da economia e a emergência de uma nova classe média, com alguma instrução e prosperidade, que a tornavam incapaz de embarcar numa aventura soviética. Essa classe, «progressista» mas conservadora, não existia na época revolucionária histórica. O abismo entre as «duzentas famílias» da imaginação marxista e as «massas» que «nada tinham a perder» fora preenchido. E a «força do PC» talvez não bastasse.

Em segundo lugar, a aliança com o MFA punha um problema, que Álvaro Cunhal sempre ignorou ou fingiu ignorar (pelo menos, não disse ou escreveu uma palavra sobre ele): o problema da divisão do poder. O MFA e, em geral, os militares «comprometidos» não se importavam de colaborar e proteger o PC, na medida em que o PC os servia. Mas, fora uma minoria militante, recentemente convertida, por muito que declarassem o seu amor à revolução, não tencionavam ficar subordinados à hierarquia do partido, quando as coisas viessem a estabilizar. Se não gostavam da ideia de eleições, rejeitavam a autoridade magistral, perpétua e absoluta do PC. Queriam o que Cunhal não lhes podia dar: a partilha do poder. Não um acordo formal, que sabiam precário. Uma partilha que implicasse a independência do MFA. Mas como, sem eleições, garantir essa independência?

ILUSÕES

Entre Setembro de '74 e Março de '75, a situação ficou indefinida. A força do PC aumentava, embora muita gente não acreditasse ainda que seriamente pretendia instalar em Portugal um regime soviético. O PS e o PPD estavam no governo e começavam a criar uma organização nacional. Spínola, retirado e em silêncio, era uma esperança e ameaça pendente. Corriam as noções mais disparatadas. Como de costume, o indígena, na sua fertilidade, ia buscar lá fora os «modelos» da moda: o regime militar, e corria que socialista, do Peru; o «compromisso histórico» com PC, à italiana; o gaullismo com Spínola; a Jugoslávia sem Tito. De qualquer maneira, havia o sentimento de que se devia passar do provisório ao definitivo. Mas, significativamente, não se pensava em resolver a questão com uma campanha eleitoral e com eleições.

Porquê? Porque a «revolução» pertencia aos «revolucionários» (ao MFA, ao PC, à Extrema-Esquerda e até a uma franja do PS) e os «revolucionários» (por razões conhecidas) se recusavam a deixar «tudo na mesma» e sensatamente suspeitavam que, com eleições, não mudariam nada ou não mudariam aquilo que pretendiam mudar. Assim, e por paradoxal que pareça, não podia haver eleições sem uma prévia «mudança» em ditadura e, para haver essa mudança, era necessário primeiro decidir aproximadamente qual, ou seja, que houvesse uma espécie qualquer de entendimento entre os partidários do «socialismo» e os partidários (na altura, envergonhados) da «democracia burguesa». Daqui nasceu o «Plano Melo Antunes».

Melo Antunes, um homem sem formação académica ou outra, que lera o marxismo de rigor na época (principalmente, a intrujice francesa), era o «intelectual» do MFA. Fechado num hotel de Sesimbra, com uma dúzia de «notabilidades», começou diligentemente o trabalho de estabelecer que reformas levariam a sociedade portuguesa a um «socialismo» democrático. Só a atmosfera política do tempo e uma infinita presunção explicam este exercício sem precedente conhecido. O espírito do «25 de Abril» está todo nele: a ilusão de omnipotência, o desprezo pela realidade do mundo, o autoritarismo, a irresponsabilidade. O «Plano» em si próprio não vale o papel em que foi escrito e nem sequer como tentativa de conciliação serviu. Poucos dias depois de ter sido finalmente publicado, veio o «11 de Março».

O «11 DE MARÇO»

O «11 de Março» é um episódio misterioso, que ninguém até hoje esclareceu. Convém por isso relembrar os factos sem especulação: na manhã de 11 de Março de '75, houve um pequeno grupo de unidades que se insurreccionou; uma delas (de resto, nada impressionante) apareceu em frente de um quartel de Lisboa, estabeleceu conversa com um oficial que por acaso lá estava e um ajuntamento ocasional de populares e acabou por se render (tudo isto se viu em directo na RTP); entretanto, um avião obsoleto metralhou o quartel e um soldado morreu; à noite, o general Spínola, sem se explicar, fugiu para Espanha num helicóptero militar. Esta aventura, desmiolada, confusa e frouxa, foi imediatamente promovida a «contra-revolução fascista» pelo MFA e o PC. Existem duas teses sobre o episódio. Primeira, que Spínola era suficientemente insano para ter organizado e desencadeado a coisa (o que, dada a sua história pregressa, não exige uma especial credulidade). E, segunda, que Spínola caiu numa armadilha do PC e da ala radical do MFA (o que, à superfície, é verosímil). Claro que Spínola não tinha um motivo tão forte como o MFA e o PC, porque naquele momento a sua simples presença em Portugal pesava a favor de que se fizessem eleições, que lhe iriam com certeza dar uma influência decisiva (mas não se pode conceder uma presunção de racionalidade a Spínola). Pelo contrário, o PC e os radicais do MFA precisavam desesperadamente de liquidar o «Plano Melo Antunes», liquidando com ele o compromisso com a «burguesia», e, caso não conseguissem evitar eleições, precisavam, pelo menos, de as tornar inócuas.

De qualquer maneira, depois de cenas de histerismo na televisão, em que o primeiro--ministro (o coronel Gonçalves) em especial se distinguiu, e de uma purga no exército e no MFA, os «revolucionários» chegaram aos seus fins. A «reforma agrária» permitiu ocupar os «latifúndios»: «latifúndios» que o «povo» por si só não ocuparia. E, de Lisboa, o governo nacionalizou a banca, os seguros, parte da indústria e centenas de empresas, que resolveu achar incompatíveis com o socialismo que se anunciava. Fora meia dúzia de excepções (nos redutos do PC e da Extrema-Esquerda), esta operação, executada a frio, não respondeu ao mais vago sentimento ou vontade popular. No terreno, a gente do PC e afim bastou para intimidar os gestores (e o resto do pessoal), que passaram a trabalhar para o «socialismo» com o mesmo zelo com que antes trabalhavam para o «capital». Com o tempo, muitos deles viriam naturalmente a ser ministros do PSD e ferozes defensores das «privatizações». Em '75, diziam o que hoje não se atreve a dizer a Extrema-Esquerda.

O «socialismo» português não passou assim de um «estado de coisas», determinado por decreto e, no vale do Tejo e Ribatejo, provocado e dirigido por activistas do MFA e do PC, sem mandato formal ou informal. Tirando a miséria e o atraso a que levou a economia, a «revolução» não tocou no país.

MÁRIO SOARES

Os «capitães» de Abril, que sobreviveram com voz, criaram o mito de que o MFA cumpriu honrada, livre e voluntariamente a sua promessa de fazer eleições. Nada mais falso. Se o fez foi apenas por duas razões: o seu interesse e Mário Soares. Comecemos por Mário Soares. Em toda a Esquerda, que se opunha ao regime mas recusava ser subordinada ou absorvida pelo PC, só ele percebeu que não existia independência possível sem apoio internacional, como sem apoio internacional não existiriam instituições democráticas. Vinte anos de experiência tinham mostrado que o PC era um inimigo sem escrúpulos de qualquer força anti-salazarista (ou antimarcelista), que não controlasse. Sem aliados, ninguém se aguentaria contra ele. E, por isso, enquanto as facções da Esquerda se divertiam com disputas teológicas, Soares criou o PS, com a ajuda do SPD (Partido Social-Democrata Alemão), do Partido Socialista Francês e do Partido Trabalhista. Além do dinheiro, obviamente indispensável, estas ligações (que em absoluto faltavam ao PPD e a Sá Carneiro) permitiram que Soares (não o PS, naquele tempo uma entidade duvidosa) aparecesse aos portugueses como o representante por excelência da Europa, ou seja, da espécie de sociedade em que eles gostariam de viver. Mais: se o PC e a facção radical do MFA decidissem de prescindir de eleições, Soares podia convocar contra eles forças consideráveis. Portugal não é uma ilha como Cuba, é uma parcela da Ibéria com fronteiras porosas, que em '75 tinha um milhão e tal de emigrantes (de primeira geração) em França e na Alemanha. A ideia de uma ditadura soviética, com o país fechado, roçava o delírio. Até Cunhal preferia uma fachada, como, por exemplo, um regime meio militar, em que ele mandasse. Mas, sem a passividade ou a colaboração de Soares, esse caminho estava fechado; e Soares queria eleições.

Por outro lado, também no MFA havia gente que apreciava o perigo, para si e para o país, de não pôr qualquer limite à «revolução» de Cunhal. O exército português, embora derrotado em África e dizimado por sucessivas purgas, não se tornara ainda um ersatz de Exército Vermelho, nem achava a perspectiva agradável. Em última análise, preferiu eleições e uma facção inventou mesmo a obtusa habilidade do «voto em branco», que era supostamente um voto MFA. Mas, mesmo assim, o MFA exigiu garantias e obrigou os partidos a subscrever um «Pacto», em que se comprometiam a respeitar as «conquistas» de «Abril», tanto passadas como futuras; e também a instituir como órgãos de soberania uma Assembleia do MFA e um Conselho da Revolução. Com estas precauções, os «capitães» autorizaram que o país votasse. Os resultados foram devastadores. Com 12,5 por cento para o PC e 7 por cento para o «voto em branco», a «revolução» era clamorosamente rejeitada e Soares, com 38 por cento, era, de facto, o representante do país.

A CONSTITUINTE

A eleição punha agora, e apesar do «Pacto», um problema crucial ao PC e ao MFA: além de mostrar o seu relativo isolamento, criava uma legitimidade nova, a legitimidade democrática, igual ou superior à legitimidade espúria a que chamavam «revolucionária». Em bom princípio, perante ela, não existia, ou devia existir, qualquer outra legitimidade. Quem lera a cartilha sabia muito bem que do sufrágio saía sempre a «contra-revolução». Lenine avisara. Só que Lenine tinha dissolvido à mão armada a Constituinte dele e a situação em Portugal exigia mais subtileza. De qualquer maneira, para a Esquerda e a Extrema-Esquerda era imperativo anular o efeito do voto. A história dos meses seguintes foi a história do esforço para que a vontade do «povo progressista» prevalecesse sobre a vontade dos portugueses. O MFA e o PC insistiram logo, invocando o «Pacto», que a revolução não acabara. O que eventualmente decidissem os representantes do país não podia prejudicar o «avanço» triunfal da «revolução», nas direcções que determinasse a sua vanguarda civil e militar. A Constituinte não devia ir além do seu mandato, ou seja, devia produzir uma Constituição e, sobretudo, não se devia imiscuir na vida política corrente, exercendo o seu direito de vigiar o PC e o MFA. Em S. Bento - e para tornar absoluto este interdito - até o período dito «antes da ordem do dia» suscitou a fúria do PC, que terminantemente o recusava, não se lembrasse alguém de falar na Assembleia sobre o que se sucedia cá fora.

Entretanto, a televisão e os jornais condenavam a própria ideia da Constituinte como inútil e «reaccionária» e ridicularizavam na prosa grosseira do PC, na altura em moda, as sessões que se iam fazendo numa atmosfera de constrangimento. O jornalismo (depois, democrático) desceu sem dificuldade ao fundo da subserviência e da sordidez. Pior: foram muitas vezes jornalistas que instalaram na RTP e na imprensa «comissões de censura» para zelar pela pureza «revolucionária» ou denunciaram quem achavam incapaz de se «adaptar» ao «processo em curso». Isto, como de costume, copiava a táctica de Lenine. E não se trata aqui de uma figura de estilo: apareciam artigos fielmente plagiados do cânone comunista. Cunhal, que ordenara este exercício, seguia as regras.

Além destas pressões directas, também vários grupos militares tentaram insistentemente que a Constituinte alargasse o seu poder para além do «Pacto». Corriam de mão em mão Constituições que davam ao MFA um terço dos lugares numa putativa assembleia unicamaral (os deputados seriam escolhidos por eleição interna) ou criavam uma espécie de Senado, exclusivamente extraído do MFA, para vigiar a câmara baixa e, através dela, como se calculará, os portugueses. Não admira. A eleição de '75 confirmara as piores suspeitas dos «capitães de Abril» e transformara em pânico o já vasto medo de represálias. Claro que esse pânico talvez se viesse a transformar - como se transformou - num desesperado desejo de compromisso. Em Maio de '75, no entanto, ainda não chegara o momento. O objectivo principal era liquidar Soares, porque sem Soares nem a legitimidade eleitoral, nem a Constituinte valiam nada.

ATAQUE E RESISTÊNCIA

Com a imprensa, a rádio e a televisão controladas por fanáticos da Extrema-Esquerda e do PC, e apesar da sua medíocre tiragem, A República do PS, como único jornal comprovadamente livre, simbolizava a determinação de resistência ao plano de instalar em Portugal um regime soviético. A 19 de Maio, a Extrema-Esquerda convenceu os trabalhadores (mas não os redactores) a «demitir» a direcção. A 20, indiferente a algumas manifestações de protesto, uma unidade militar evacuou e fechou as premissas. Injustificável e provocatória, esta operação (a que o PC, no fundo aprovando, ficou pudicamente alheio) suscitou um escândalo na Europa e esclareceu a opinião socialista, que admirava os «capitães de Abri» e desconfiava de Soares, sobre a genuína natureza do «processo revolucionário» português. Da usual peregrinação de «intelectuais» maravilhados (entre eles, como sempre, Sartre e Beauvoir, no seu último espectáculo de indigência e má fé), o clima foi mudando para um apoio cada vez mais largo e mais convicto à resistência do PS.

Com o assalto à República, Soares perdeu a imprensa. Mas já o PC, a 30 de Abril, cinco dias depois da eleição que revelara a sua impopularidade e a sua fraqueza, se preparava para lhe tirar, por decreto, os sindicatos. O decreto em causa, aprovado pelo governo e pelo Conselho da Revolução estabelecia que só houvesse um sindicato por ramo de actividade - a «unicidade sindical» - coisa que, em princípio, permitiria ao PC penetrar e controlar os sindicatos da «classe média». Cunhal voltava com isto a exibir a sua incompreensão do país moderno. Nem os sindicatos tinham a importância e o peso que ele supunha, nem a classe média tencionava engolir o PC em paz. Pelo contrário, a oposição do PS à «unicidade sindical», inaugurada com um discurso de Salgado Zenha, contribuiu decisivamente para tornar a classe média militante e a fazer aceitar a direcção política de Mário Soares. Foi nessa altura que se inventou o slogan «PC escuta, o PS está em luta» e que o anti-comunismo desceu à «rua». A partir de Julho, a «rua», que antes pertencia à Esquerda e à Extrema-Esquerda, passou para o PS e para inumerável multidão que o seguia.

Este era um fenómeno novo para que a cultura «intelectual» vigente não preparara os «revolucionários». Segundo os manuais, os «moderados», uma excrescência da «burguesia», de resto numérica e politicamente sem significado, ficavam sempre entre a obediência e o exílio. Os mitos em que a Esquerda se educara eram taxativos. Em Paris, a «moderação» não marchara em defesa do rei, nem contra Robespierre. Em Moscovo e Petrogrado, emigrara para a Alemanha ou fora vender móveis na rua. Mas, surpreendentemente, em Lisboa e no Porto, andava em manifestações (cada vez maiores), berrando contra a «revolução». Como explicar esta inconcebível extravagância e, sobretudo, como a explicar aos militares, a quem fora garantida a infalibilidade do «marxismo» e de Lenine? Entre Junho e Julho, embora ninguém tivesse ainda consciência disso, a fantasia de «Abril» já se estava a dissolver. O PC, o MFA e a Extrema-Esquerda tinham perdido sem remédio a iniciativa. Soares estava senhor da situação. Só faltava o delírio final da «revolução».

Esse delírio, que, incidentalmente, custou a sofrer, veio mostrar o abismo da miséria e da ignorância portuguesa. Os desvarios do MFA (que se torcia e retorcia para tornar meter o génio na garrafa) atingiram os limites do indescritível. As facções, que ora se juntavam, ora se afastavam, iam publicando «planos» para a salvação da Pátria. Um deles declarava o MFA o «Movimento de Libertação do Povo Português»: entidade «suprapartidária», que se destinava a conduzir «o processo de descolonização interna» e a «construir uma sociedade socialista». Os meios desta obra variavam entre o «pluralismo», a «democracia directa» e, ajuizadamente, a censura. Outro «plano», o «Documento-Guia Povo-MFA», ideia do PC e de Otelo, achava melhor um sistema de «sovietes», como se julgava que existira na Rússia (não existira), enfeitado com uma Assembleia Popular Nacional (isto com a Constituinte em funções). À capa da legitimidade da G3, não houve cretinismo ou torpeza em que não se pensasse, para grande deleite da «inteligência» indígena. Felizmente, o exercício era na essência assobiar no escuro.

A 10 de Julho, A República reabriu com um coronel a director e uma redacção de Extrema-Esquerda e o PS saiu do governo. A 16, saiu o PPD. A 18, no Porto, e a 19, em Lisboa (na «Fonte Luminosa»), dois comícios do PS com centenas de milhares de pessoas ( seguramente, em conjunto, mais do que um milhão) pediram que o primeiro-ministro, e agora general, Gonçalves fosse demitido. Pior ainda para o PC e o MFA: a 17 de Julho (na Lourinhã e no Cadaval) começou uma ofensiva contra as «casas de trabalho» (as sedes) do Partido Comunista, que, semana a semana, alastrou para norte, com apedrejamentos, com incêndios, com a agressão de militantes. Por detrás deste movimento, em grande parte espontâneo, estava a Igreja, com o seu prestígio, a sua experiência e, principalmente, com um padre em cada paróquia. De repente, o mundo «revolucionário», o mundo triunfante da «verdadeira» Esquerda, tremia em Lisboa; e ficava reduzido às suas dimensões reais: o reino comunista do sul (excepto o Algarve) com a capital em Almada.

Perante o país sublevado, o MFA, esse dilecto «movimento de libertação», percebeu (com dificuldade) o que o PC e o radicalismo militar esperavam dele: muito simplesmente que ele se tornasse um «movimento» de ocupação e repressão como o fora na Guiné, em Moçambique ou em Angola. Desta vez, por azar, em Portugal. Mesmo os «capitães de Abril» eram capazes de entender que, se aceitassem esse extraordinário papel, correm à sua perdição. E o medo do que se preparava anulou instantaneamente o medo de retribuição pela fuga de África pelo caos de «Abril». Até ao Verão de '75 o MFA fugira para a Esquerda, dali em diante fugiria com igual entusiasmo para a Direita. Só a lógica não mudou. Em 7 de Agosto, um manifesto, o «Documento dos Nove» (Melo Antunes, Lourenço e sete sócios), que apesar da sua retórica «revolucionária» e socialista (e da condenação já litúrgica da social-democracia) rejeitava um regime soviético, condenava as divagações de Otelo e se decidia pelo «pluralismo», foi assinado por 80 por cento da oficialidade do Exército (com certeza por mais na Força Aérea). Acabara a «festa». Numa reunião em Almada, o próprio Cunhal reconheceu a derrota. E depois de uns dias de negociação e trapalhada, a 5 de Setembro, em Tancos, uma Assembleia do Exército expulsou seis comunistas (incluindo Gonçalves) do Conselho da Revolução e os «moderados» (evidentemente, os «nove») tomaram o poder.

OTELO E A GUERRA CIVIL

Quando o PS e o PSD saíram, caiu o IV Governo Provisório, que foi substituído por um V, em que Gonçalves continuava como primeiro-ministro. O V Governo, um ajuntamento fortuito de gente sem estatuto ou qualificação, caiu com Tancos. E veio a seguir outro (o VI), em substância do PS, com um almirante excêntrico à cabeça. Das «forças revolucionárias», restava o COPCON, sob o comando de Otelo e de Extrema-Esquerda. E o PC que, sem se querer arriscar a um confronto aberto com o Exército «moderado», queria, pelo menos, contribuir para a expeditiva remoção do VI Governo e explorar o vácuo, que se havia de seguir. Mas, para compreender esta nova situação, é preciso compreender um ponto básico: o COPCON (Otelo) e o PC não tinham meios para ocupar duravelmente o Estado e, sobretudo, não tinham um modelo de acção. O modelo jacobino de Lenine, e Cunhal, falhara. Da «democracia directa» não decorria manifestamente uma teoria revolucionária e era tarde para a inventar. Uma certa reserva e uma certa oscilação do PC nos meses que precederam o «25 de Novembro», indicam que Álvaro Cunhal, sem uma estratégia clara, improvisava: meteu um comunista no Governo; ajudou a promover a agitação em Lisboa; colaborava com o PS. Não sabia para onde ir. Principalmente, porque não tinha para onde ir. E talvez também porque não ignorava que um regresso do PC ao poder implicava uma repressão de massa, em si própria perigosa e de resultados duvidosos. Em Otelo, um mitómano pouco inteligente, que muitas vezes roçava o patológico, é escusado procurar um pensamento racional. A sua própria ideologia, aliás (se meia dúzia de slogans merecem o nome) o encorajava a esperar a salvação da iluminada iniciativa do «povo» e do tumulto «criador» que ela eventualmente produzisse. De Setembro em diante, Otelo foi uma força anárquica: entregou armas ( 3000 G3), sem razão ou desculpa, aos civis do PRP; indisciplinou e politizou a parte do Exército que lhe estava entregue; não mexeu um dedo para eliminar uma associação secreta de soldados (os SUV) ou para evitar que um grupúsculo de Esquerda ocupasse a Rádio Renascença; assistiu sem intervir a um cerco ao Governo (em S. Bento) e ao assalto à Embaixada de Espanha; permitiu um segundo cerco, agora à Constituinte; protegeu manifestações do PC e da Extrema-Esquerda ; deixou, pelo silêncio, que se inventassem boatos de «golpes» da Direita e que o PRP apelasse à insurreição armada, na mais total impunidade. Mas tudo isto não levava a nada, mesmo com a fraca resistência do Governo. Em Novembro o poder de Otelo não era maior do que em Setembro. Se alguma coisa, era menor. O seu único aliado, o PC, nunca o aceitaria como parceiro permanente e tencionava dispor dele na primeira ocasião. Horrorizado, o país, aqui e ali armado e activo, estava à beira de um levantamento. Otelo ia caminho de um paroxismo de violência e desordem de consequências quase incalculáveis.

Não é de qualquer maneira provável que, ganhando, tivesse levado Portugal a guerra civil: com o Norte contra o Sul e a Esquerda contra a Direita. Não havia dos dois lados nem tropas, nem dinheiro, para conduzir uma guerra por mais de uns dias, excepto com intervenção estrangeira; e é literalmente inconcebível que a América, a Europa e a URSS, em 1975, se envolvessem num conflito caro e perigoso, por vagos motivos de estratégia (Kissinger, por exemplo, achava que não havia nenhum) ou simples motivos de prestígio. Uma vitória militar de Otelo talvez desse oportunidade a uma matança, a uma larga matança, e a operações de polícia de tropas da NATO para «varrer» as ruas e restabelecer a autoridade do Estado: não parece que nessa eventualidade Brejnev viesse em socorro de Cunhal. Quanto a Otelo e aos seus camaradas «revolucionários», não existia no mundo quem os defendesse.

Foi este isolamento e este desespero político de Otelo e do PC que determinaram o modo e a conclusão do «25 de Novembro». A campanha contra o VI Governo precisava de um desfecho qualquer: muito simplesmente, não era possível viver assim. Ou caía o governo, ou Otelo se insurreccionava. Otelo hesitou, tanto mais que PC não se queria arriscar directa e ostensivamente na aventura. Esta hesitação convidava os militares «moderados» a enfraquecer ou disciplinar as unidades em que não confiavam. Uma delas, os pára-quedistas de Tancos, presumivelmente por causa do clima geral de ansiedade e suspeita, decidiu por sua conta inaugurar a insurreição. Prevenido tarde, o COPCON ainda conseguiu tomar algumas medidas de apoio. Mas, no momento crucial, Otelo resolveu abandonar o posto de comando e ir pacatamente para casa. Mais tarde, tentou explicar este acto em muito pormenor, sem convencer ninguém. Não podia evidentemente dizer, nem a si próprio, que uma política absurda e a frivolidade da insurreição o tinham paralisado. Também Álvaro Cunhal e o PC se conservaram em sossego, para não pagar o preço da derrota de Otelo, que uma parte da Direita (não tão insignificante como isso) lhes tencionava exigir.

O tardio realismo dos chefes, no entanto, não ajudou os peões. Decapitado o COPCON e com os comunistas passivos, Ramalho Eanes enterrou rapidamente a «revolução». Ou enterrou o seu cadáver visível, porque a Esquerda a transformou num mito, que persiste em viver.

UMA REVOLUÇÃO?

O «25 de Abril» foi uma revolução? Não foi. O pronunciamento militar liquidou o antigo regime e dali em diante tudo o resto sucedeu com a protecção e com frequência o incitamento do MFA ou parte dele. Os «revolucionários» (do PS ou de qualquer grupúsculo) agiram sempre em liberdade e completa segurança, pessoal e colectiva. Em '74 e '75 nunca tiveram de enfrentar uma oposição séria e, quando encontraram a mais leve resistência (um fenómeno raro) o Exército resolveu o problema. A sua acção não passou em geral de um exercício de pura prepotência. Nenhum morreu, nenhum esteve na cadeia (durante o PREC, claro), nenhum perdeu o seu emprego. Não por acaso os mais fanáticos continuam a falar da «festa de Abril». Só que não há revoluções sob o alto patrocínio do poder político.

Mas, tirando isto, e não é tirar pouco, transformou a «revolução», como alguns pretendem, a sociedade portuguesa? Não transformou. Não se muda uma sociedade com ocupações seja do que for ou «saneamentos» seja de quem for. Um dos grandes mitos da Esquerda radical a ocupação (de terra ou de uma empresa) é um exercício absurdo que se derrota a si próprio (eliminando o patrão, o capital e o crédito leva fatalmente à falência e ao desemprego). Quanto aos «saneamentos», para durarem, exigem a instauração e consolidação de um novo regime e que esse regime exclua sistematicamente a elite da véspera (uma coisa impossível que nem Estaline tentou). Não admira que em cinco anos restasse vestígio de qualquer ocupação e que os «saneados» voltassem tranquilamente aos seus lugares, quando não ao governo. A agitação «revolucionária» produziu ruído e conseguiu incomodar muito gente. De importante e de permanente não trouxe nada.

Falta falar da «reforma agrária» e das nacionalizações. Se não existem, como não existiam movimentos de massa que as reclamem e defendam, cedo ou tarde, quem a título de «reforma agrária» se apropria de terra alheia, devolve a terra; e as nacionalizações são invertidas por privatizações (tanto mais que, no caso da indústria e da banca, o pessoal dirigente trabalhou para o «socialismo» como trabalhara e depressa tornaria a trabalhar para o capitalismo). Até o PC que observou que a «reforma agrária» e as nacionalizações não eram por si a revolução. De facto. Foram, isso sim, a ruína da economia portuguesa e presumo que irritaram muito, sem consequência de maior, algumas famílias. Como resultado, não se recomenda.

Ainda se diz que Portugal deve agradecer a sua presente «liberdade» aos «capitães de Abril». Não se vê por que razão. A liberdade nunca ocupou o primeiro lugar no seu «pensamento» ou na sua política. E, se hoje há um regime democrático, o responsável é Mário Soares, que precisamente o impôs contra a vontade dos militares. A verdadeira revolução foi a dele.

Vasco Pulido Valente

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