Um processo duas crises.
"Começo com uma pequena ingenuidade: eu percebo que os jornalistas precisem e dependam das suas fontes, particularmente de fontes protegidas com o anonimato. Mas que o inverso também se passe, que as fontes precisem e dependam dos jornalistas, eis uma estranha realidade dos nossos dias que não consigo esclarecer. Nem percebo a existência de certas fontes, a não ser, possivelmente, pelo interesse ou pela fatuidade de ver o que se sabe e não se sabe na primeira página do jornal do dia seguinte.
Acontece que, neste último ano e meio de processo Casa Pia, temos assistido a isto com espantosa frequência: as fontes - fontes seguras e confiáveis mas também fontes apócrifas, mal-intencionadas ou simplesmente irresponsáveis - deixaram de existir para os jornalistas; os jornalistas é que passaram, obedientemente, a existir para as fontes.Uma das causas dessa inversão é a multiplicação excessiva das fontes. Existindo muitas pessoas disponíveis para ceder informação, é inevitável que os jornalistas se interessem por elas e que toda essa informação apareça. O excesso de informação, que sempre caracterizou o processo Casa Pia, resultou também de um excesso de fontes.
De magistrados a assessores, de investigadores a funcionários, de advogados a arguidos, de gente incauta a gente mentirosa, ninguém se eximiu de revelar dados do processo, violando o segredo de justiça e contribuindo para uma espiral de desinformação que há muito nos leva a desconfiar de qualquer facto e episódio novo sobre o assunto. As violações do segredo de justiça chegaram a cruzar-se com as guerras corporativas entre juízes, advogados e magistrados do Ministério Público. Cada violação do segredo de justiça era justificada por outra violação anterior. Aqueles que mais deviam proteger a legalidade foram os primeiros a violá-la, como o Procurador-geral da República e o director da polícia judiciária. Resultado: hoje, já ninguém acredita que o processo Casa Pia foi conduzido com responsabilidade e lisura. E já ninguém quer saber. Mas a irresponsabilidade das fontes só tem consequências visíveis se for acompanhada de irresponsabilidade da imprensa.
Olhando para trás, para a forma como a imprensa portuguesa tem coberto o processo Casa Pia, é difícil dizer que o nosso jornalismo esteja a passar bem este teste. Não é preciso visitar redacções ou conhecer todos os meandros da profissão para perceber que os jornalistas andam numa enorme confusão com as fontes. Aparentemente, têm perdido algum domínio sobre a informação que transmitem. Deixaram de decidir sobre o que é ou não importante, o que tem ou não interesse público, o que deve ou não ser conhecido. Puseram de lado essa função de escrutínio e escolha, essencial para a credibilidade da comunicação social junto do público, da vasta informação que recebem. Em vez disso, passaram a publicar tudo, a dar ouvidos a tudo, a veicular tudo. É claro que não existem aqui inocentes. As fontes servem-se da imprensa para realizar os seus interesses; e a imprensa serve-se das fontes para cativar o público. Mas, na ânsia de obterem mais informação, os jornalistas absorveram passivamente todos os factos, relevantes ou dispensáveis, que lhes foram chegando. Em muitos casos, limitaram-se a amplificar as intenções das fontes.
No último ano, foi possível seguir as notícias da certos jornais sobre a Casa Pia, a partir do tipo de fontes que lhes dão as notícias.Quando sabemos que as cassetes com as conversas entre Adelino Salvado e o jornalista do Correio da Manhã têm uma duração total de 47 horas (?), quando lemos os excertos transcritos na imprensa, cheios de apartes, especulações, inutilidades, conseguimos ver em que é que se transformou a relação entre jornalistas e fontes: uma enorme bambochata, uma conversa de café, uma diversão manipulada, uma promiscuidade sem nome. Culpa das fontes? Culpa dos jornalistas? Não, culpa de ambos.Tem-se dito que o processo da Casa Pia mostrou o estado da justiça portuguesa.
A precipitação de certos juízes. O amadorismo de magistrados. A lentidão do nosso processo. É um facto. Mas o processo da Casa Pia revelou também a crise da imprensa portuguesa, a sua impreparação para um processo judicial único e profundamente complexo, a indefinição dos seus processos, o «vale tudo» das suas regras, as suas dificuldades em resistir à pressão e em filtrar a informação que recebe. Não esqueço que a revelação do escândalo Casa Pia foi uma vitória dessa imprensa. Mas os vencedores, com frequência, são os primeiros a desbaratar as suas vitórias."
Pedro Lomba
Finalmente alguém descobre o actual estado do nosso jornalismo. Mau, muito mau.
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