terça-feira, novembro 23, 2004

Excessos da tolerância

"Na Europa, a notícia passou, até agora, despercebida, mas, nos EUA, The New York Times divulgou, com justificada apreensão, as consequências do chamado multiculturalismo, doutrina que há décadas vem presidindo ao direito e à organização social do Canadá.O caso mais significativo acontece no Estado de Ontário, onde a Sociedade Canadiana de Muçulmanos criou, ao abrigo de uma lei que permite às autoridades religiosas procederem a julgamentos em certas matérias, um Instituto Islâmico de Justiça Civil vocacionado para aplicar nada mais nada menos que o código islâmico, ou seja, a famosa charia. Pode acontecer, por exemplo, que uma imigrante ou filha de imigrantes receba só metade da herança que recebe um seu irmão, ou veja recusado o direito a divorciar-se.

Tudo porque a charia olha diferentemente um e outro sexo, diga o que disser a Constituição do país.A lei do Ontário, é verdade, só concede às autoridades religiosas esse poder de julgarem casos de âmbito civil se as pessoas envolvidas estiverem de acordo. Além disso, está garantida a possibilidade de recorrer da decisão religiosa para os tribunais do Estado. Não faltam, no entanto, organizações a protestar, lembrando que muitas destas mulheres imigrantes estão completamente isoladas e na dependência do marido ou da família deste, quer pela sujeição aos costumes e à pressão social, quer pela ignorância e a incapacidade de falarem outra língua que não a de origem. Na prática, tudo se conjuga para que um verdadeiro Estado dentro do Estado possa desenvolver-se, negando a cidadãos do país direitos e liberdades constitucionalmente consagrados e, pior do que isso, valores fundamentais da civilização a que o Canadá obviamente pertence, tais como a igualdade entre homens e mulheres.

O bom senso evitará, decerto, que venha também a aprovar-se o apedrejamento de adúlteras ou a mutilação de ladrões, conforme a interpretação da charia que vigora em outros países. De qualquer modo, os dirigentes do mencionado instituto já vieram avisar que «os muçulmanos têm um modo de vida diferente do dos ocidentais, que é secular», e que tudo quanto faz um muçulmano «rege-se pela lei religiosa».Para os defensores do comunitarismo, será muito difícil argumentar convincentemente contra uma tal evolução, pese embora os riscos que ela implica se tornarem cada vez mais evidentes, à medida que a comunidade islâmica aumenta no país. Como é sabido, a doutrina apresenta-se como garante da coexistência pacífica das diversas comunidades, concedendo a cada grupo o direito de cultivar plenamente a sua identidade. O ideal, segundo Pierre Trudeau, antigo primeiro-ministro, seria um Canadá sem uma identidade dominante, nem uma cultura oficial. Assim se evitaria que uma comunidade impusesse as suas convicções e costumes às restantes.

Aparentemente, a sorte de cada um dos indivíduos que vive dentro dessas comunidades não preocupa esta gente. Enquanto a questão foi apenas o Quebeque, ou seja, enquanto estiveram em causa unicamente duas comunidades de língua e cultura diferentes mas incorporando ambas os direitos individuais, não houve, de facto, problemas. Mas, assim que apareceram comunidades que não reconhecem tais direitos, a doutrina evidenciou logo a sua principal fragilidade: de tanto querer que todos afirmem livremente a sua identidade e os seus valores, esqueceu que a natureza secular da lei é, em si mesma, um valor e um valor que, se não for imposto às várias confissões, deixa em risco os direitos individuais. Os europeus que dizem que o laicismo é apenas uma bizarria francesa e jacobina deveriam olhar com mais atenção para o exemplo do Canadá."


Diogo Pires Aurélio

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