terça-feira, dezembro 28, 2004

EMILIE, LA OLVIDADA

"Outubro de 2001. Foi-se Emilie, a viúva de Oskar Schindler, o bon vivant salvador de judeus, imortalizado por Hollywood. Faleceu poucos dias antes de seu 94o. aniversário, numa clínica na cidade de Strausberg, a poucos km de Berlim. Morreu realizando um pequeno sonho, o do retorno à sua pátria. Não a via desde 1949 e quando chegou, disse, fascinada: “A Alemanha é muito bonita, quero ficar aqui”. Seu grande sonho, porém, o resgate de seu verdadeiro papel histórico na salvação de 1.700 judeus virtualmente condenados à morte, só lentamente emerge das sombras, em que “historiadores”, políticos e Hollywood a mergulharam.

Conheci-a em 1993, na cidadezinha de San Vicente, 70 km ao sul de Buenos Aires, quando seu estado de saúde já inspirava sérios cuidados. Para localizá-la, fez-se necessário hercúleo trabalho de investigação e o auxílio veio da comunidade judaica portenha. Quem fez a ponte e me anunciou por telefone, foi Finkelstein, judeu berlinense que, fugindo dos nazistas, alcançou a América Latina através do Expresso Transsiberiano, via Rússia e Japão, e que depois de caçar onças e animais exóticos na selva boliviana para exportadores de peles, aportaria em Buenos Aires na década dos anos 50, trabalhando para a agência de notícias Dpa, antes de tornar-se o editor do “Semanário Israelita” em língua alemã.

Com o mapa rodoviário sobre o colo, demorei cerca de uma hora para alcançar San Vicente, pela estrada que segue a La Plata, cortando em linha reta o início da pampa, entediante e tristonha, como todas paisagens sem relevo. Ao receber-me no portão de sua modesta casa, reparei que Emilie arquejava ao caminhar e quando abriu a porta da sala, espantei-me com a turba de dezoito gatos, que ela me apresentou, nome por nome, e que, miando e ronronando, enroscavam-se em suas pernas, dificultando ainda mais seus passos pela casa. Contou-me que vinha padecendo de uma inclemente osteoporose que lhe triturava as articulações e principalmente os ossos da coluna. Mas não se deteve em ir à cozinha várias vezes, para servir-me café e um farto prato com pão e frios, que os gatos, já gordos mas desavergonhados, insistiam em devorar, já que eu declinara educadamente do simpático e rústico lanche. Chamou-me a atenção a modéstia de seus aposentos, hermeticamente fechados, para isolar as fatais correntes de ar para uma octogenária como ela. Era forte o odor do xixi dos gatos mesclado com os gases do óleo diesel da estufa que aquecia sofrivelmente a sala, na qual estávamos sentados naquele sábado frio e chuvoso. Surpreso, percebi que Emilie Schindler levava a vida de uma mulher pobre. Sim, porque eu trazia nas mãos um exemplar de “Schindler’s List” do australiano Thomas Keneally, imaginando que tanto a edição do livro, quanto a compra dos direitos do mesmo por Steven Spielberg para a roteirização do filme homônimo, tivessem rendido uma polpuda reserva em direitos autorais a Emilie. Boquiaberto ouvi seu relato queixoso de que o bestseller de Keneally, que já vendera centenas de milhares de exemplares no mundo todo, lhe rendera míseros 25 mil dólares, com os quais estava pagando tratamento médico. Pior: Spielberg argumentara a seu advogado que, com a aquisição dos direitos cinematográficos pagos a Keneally, teria "quitado" sua conta com os Schindler. Por isso revolta-me oito anos mais tarde, a notícia lida no portal de um jornal europeu, constatando que Emilie teria morrido como vivera durante a maior parte de sua vida: em amarga pobreza.

A vida não foi generosa com Emilie. Ela lutou durante 50 anos para emergir da sombra de Oskar Schindler. Lembro-me nitidamente de alguns detalhes da minha primeira visita. A pintura descascada das paredes da casa, os móveis velhos e mal conservados, as roupas surradas e puídas, o cabelo desgrenhado e seu rosto profundamente vincado por rugas – a tudo aderia a fuligem pastosa da indiferença incorporada com resignação. Pareceu-me ansiosa em contar-me sua história, com frases que a protagonista tivesse insistido em aprisionar o tempo nos objetos que a cercavam e em si mesma; tempo que aludia das fotos que ia retirando, com emoção reprimida, de uma caixa de sapatos e estendendo-as sobre a mesa. Fotos que remontavam ao final da década dos anos 30, na Moravia, revelando uma jovem mulher vencedora, filha de pais ricos, que apostou todas suas fichas para ser feliz ao lado de Oskar. Mas, o tempo que veio depois, assim contavam-me as duas rugas de amargura nos cantos de sua bonita boca, dilatou-se em intermináveis cinqüenta anos de infelicidade.

Quando lhe confessei, rindo, que sua semelhança com Lauren Bacall me arrancara suspiros naquela foto em preto e branco (diante de sua casa na Morávia, República Tcheca, com o carimbo do ano de 1938 no verso ainda legível), na qual estava abraçada ao galã Oskar, consegui roubar-lhe um sorriso fugaz, logo espantado por um aceno de desdém: “Mas ele sempre viveu pendurado em outras saias !”, advertiu. Ao despedir-me deste primeiro encontro, já parado do lado de fora do portão, lembrei-me de perguntar-lhe se poderíamos gravar seu memorável depoimento, que semanas depois seria transmitido pela Deutsche Welle (DW-TV) para o mundo todo, em alguma estação de trens de San Vicente. Expliquei-lhe que eu tinha imaginado que ela e Oskar tivessem se despedido numa plataforma de trem, quando ele partiu da Argentina em 1957. É que eu guardava em minha memória visual as fantasmagóricas imagens de estações de trem e o ranger metálico, gritado, das rodas dos vagões carregados de judeus, em lento movimento rumo aos campos de concentração nazistas... Mas a octogenária sorriu cinicamente, destruindo meu roteiro: ”Não foi nada romântico, ele apenas acenou, aí do lado de fora do portão, onde o sr. está. Virou as costas e partiu, foi assim que eu o vi pela última vez..”. Voltei ao carro e enquanto este rumava de volta a Buenos Aires, esforcei-me em disfarçar a imensa tristeza, reclamando do “vento” que, debaixo dos óculos escuros, me arrancava lágrimas dos olhos. A imagem dos trens, porém, se instalara de forma tão insistente em meu imaginário que, ao retornar a San Vicente, três dias depois, com minha equipe de TV, teimei em documentar a única estação, onde há anos já não circulavam trens, cujo sino estava enlaçado por uma imensa teia de aranha e cujos trilhos, que pareciam vir do nada e ir para lugar nenhum, estavam abraçados por uma imensa capoeira. No filme, usei esta imagem como metáfora de Emilie, a esquecida, cujo ilimitado amor, há muito amalgamado com indignação e fel, escapou-lhe dos lábios, quando mal nos tínhamos acomodado debaixo de um pessegueiro em flor, para gravar a entrevista em seu jardim. Apontando para uma pequena elevação de terra coberta de grama, no fundo do pomar, disparou, secamente: “Sabe o que é aquilo ? Aquela é a cova do meu cachorro, mais digna e florida que o túmulo de Oskar em Jerusalém, lhe asseguro – ele não merecia outra coisa !”.

Uma por uma, Emilie espinafrou as afirmações do livro de Keneally, que eu mantinha no colo e folheava para as perguntas, que ela respondia diante da câmera. Uma das que mais me impressionou e repercutiu pelo mundo afora, foi sua descrição dos enfrentamentos verbais que afirma ter tido com Amon Göth, o comandante SS do campo de concentração de Cracóvia: “Certa noite, durante um jantar em nossa casa, quando ele falou aquela baboseira toda, com aquela empáfia patrioteira, sobre a necessidade de sermos ‘bons alemães e esquecermos os judeus’ etc e tal, pedi-lhe que fosse embora, caso contrário eu lhe meteria a mão na cara, ali mesmo – e ele levantou-se e foi !”, disse, olhando para a câmera, desafiadora: “O Oskar comia pelas bordas, mas eu não tinha medo daqueles caras, eu os enfrentava..”, advertiu. Com estas atitudes destemidas, Emilie protegeu e salvou, inicialmente, 330 judeus – homens, mulheres e crianças – do extermínio na Polônia ocupada. É que lhe coube decidir, se um grupo de 330 judeus, que já se encontravam presos num trem, deveria seguir para um campo de extermínio, ou ficar com ela, "para trabalhar na fábrica": “Na realidade eles estavam muito fracos para trabalhar, mas eu disse aos guardas que precisava deles, assim mesmo, e daí começamos a enterrar os mortos e a tratar dos que estavam esgotados e doentes”.

Diante do avanço das tropas soviéticas sobre a Polônia, Oskar e Emilie desarmaram sua fábrica em Cracóvia e a reergueram em Brünnlitz (atual Rep. Tcheca). Remontando em sua memória um cenário de filme de mocinho e bandido, Emilie descreve de forma divertida, como corrompeu oficiais e guardas da Wehrmacht e da SS em Brünnlitz com jóias, e como conseguiu contrabandear cereais para alimentar os judeus que trabalhavam na fábrica. “Quando as jóias acabaram, usei vodca para corromper o próprio dono do moinho de cereais, vodca que tínhamos trazido de Cracóvia !”, excitou-se, como se as cenas tivessem ocorrido na noite anterior... Mas, como ?, pergunta-se, os Schindler conseguiram salvar da morte e trazer “seus” 1300 judeus de Cracóvia para Brünnlitz ? Declarando-os “força de trabalho imprescindível para a Economia do Reich”, explica a Sra. Schindler. Com algum esforço e muita persuasão, a justificativa perante a SS “colou” e os Schindler conseguiram salvar “seus” judeus da morte.

É vã, porém, a tentativa de encontrar estas cenas protagonizadas por Emilie Schindler na “Lista” de Spielberg. Simplesmente porque o diretor hollywoodiano não realizou nenhuma pesquisa adicional ao livro de Keneally, e foi o escritor quem cometeu as graves omissões, limitando-se a entrevistar Oskar, enquanto vivo na Alemanha, e seu ex-assistente em Cracóvia, o judeu Isaac Stern, que elaborara a famosa lista e que depois da 2a. Guerra emigrou para os EUA. Pior: não tivesse sido Stern - em cuja loja Keneally comprara uma mala e que o seduziu para escrever o livro, para o qual Stern e Oskar tanto buscavam um autor - e Emilie não teria recebido um tostão furado de direitos autorais da venda do livro – por decisão de Oskar, e daí a sua grande amargura. Disse-nos Emilie diante da câmera da Deutsche Welle TV: “Oskar ‘privatizou’ a história da lista, como se tivesse sido seu único protagonista. Nunca me informou que um livro estava sendo escrito e foi graças à decência do Sr. Stern, que advertiu a editora sobre a minha pobre vida na Argentina, que acabei recebendo 20 mil dólares”. Nunca se sabe ao certo, se foi esta atitude pouco ética de Oskar, que fez a Metro desistir da primeira tentativa de adaptação da “Lista” para o Cinema, depois que Oskar retornou à Alemanha, em 1957, onde faleceu em 1974. O fato é que um grande diretor estava apaixonado pela estória e esta, assim como a vida de Emilie poderiam ter tomado um rumo completamente diferente. O diretor chamava-se Fritz Lang; o legendário diretor de "Metropolis".

Só com muito esforço consegui evitar, pouco antes da estréia do filme de Spielberg, que da entrevista televisiva com Emilie fosse suprimida (censurada, por temor a pressões) sua explosiva denúncia, de que até o final de 1993 não havia recebido nenhum níquel de direitos autorais de Spielberg – acusação renovada contra Spielberg no Festival de Cannes de 2001, pelo cineasta Jean Luc Godard, através de um personagem de seu filme “Elogio do Amor”. Pressionado, em 1996 Spielberg resolvera remeter 50 mil dólares à anciã, mas esta levou adiante sua denúncia, que ganhou os foros da Justiça, quando Emilie passou a reivindicar seis por cento de participação na exploração comercial internacional d’ “A Lista”. O processo, porém, nunca progrediu e Spielberg ficou lhe devendo até a morte, o que constitui um dos episódios mais antiéticos da história de Hollywood. Não teria custado nada ao oportunista e mais rico dos diretores norte-americanos, gratificar com justiça a grande, porque – comparativamente a Oskar Schindler - modesta e arredia heroína da lendária “Lista”, que durante décadas vegetou socialmente no anonimato de San Vicente, e que continuava pobre, enquanto a “Lista” enriquecia Spielberg. São comoventes, por outro lado, as formas através das quais a Argentina, seu país anfitrião, a tratou do primeiro ao último dia sua permanência. Durante mais de 20 anos a comunidade judaica de Buenos Aires custeou suas necessidades básicas com habitação. Foi o Congresso argentino quem a declarou “Cidadã Ilustre da República Argentina” em 1999, foram os jogadores do River Plate quem lhe ofertaram uma cadeira de rodas, quando Emilie já não podia mais caminhar, e foi na Argentina, finalmente, onde Emilie conseguiu publicar seu livro de memórias.

É hilariante que, apesar d’ ”A Lista” de Spielberg e do cerco televisivo, Emilie só tenha conseguido quebrar o anonimato com sua autobiografia “Eu, Emilie Schindler”, redigido por Erika Rosenberg e lançado internacionalmente na Feira do Livro de Frankfurt de 2001. O que fez Emilie retornar à Alemanha, alguns meses antes, foi, sem dúvida, uma enorme saudade e aquele instinto de animal moribundo, que busca o chão da infância para seu último suspiro. Nos bastidores, entretanto, voltara a travar uma batalha jurídica inteiramente nova: a posse da Mala de Schindler, encontrada no sótão de uma casa na cidade alemã de Hildesheim, pelos filhos de uma confidente de Oskar, falecida em 1999. A mala havia sido presenteada por Oskar à “amiga”, e continha nada mais e nada menos que os originais da famosa Lista datilografados por Stern, várias cópias do valioso documento, mapas, fotos e intensa correspondência trocada ao longo de quase vinte anos, desde que deixara a Argentina. Como a mala fora entregue ao jornal Stuttgarter Zeitung, que publicou todo o material em forma de série, sem consulta a Emilie , esta processou o jornal e reivindicou tanto a posse da mala, como uma indenização no valor de 100 mil Marcos. Através de um acordo, conseguiu um acerto sobre 25 mil, mas a mala já estava depositada no Memorial Jad Vashem em Israel. Até o final de setembro de 2001, Emilie Schindler lutou pela transferência definitiva da lendária mala para a Casa da História da República Federal da Alemanha, em Bonn, mas um derrame a fulminou antes que se regozijasse pelo resgate – de sua própria história e de seus adereços.

Publicado: 26.7.2004

© Frederico Füllgraf
Fonte: A confraria.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Why did Oskar Schindler do what he did?
Schindler never gave a clear explanation for why he protected and saved the lives of as many Jews as he did. Some might say that his humane actions and sacrifices need no explanation. Schindler attempted to explain his actions by saying the following:

"I knew the people who worked for me. When you know people, you have to behave towards them like human beings."

Another time, Schindler described his behavior differently: "There was no choice. If you saw a dog going to be crushed under a car, wouldn't you help him?"

terça-feira, dezembro 28, 2004  
Anonymous Anónimo said...

Why did he leave his wife and never return?
Even Emilie Schindler was not sure why Oskar never returned to her. In a passage from her A Memoir Emilie wrote of visiting Oskar's tomb over 37 years after he left:
"At last we meet again .. I have received no answer, my dear, I do not know why you abandoned me .. But what not even your death or my old age can change is that we are still married, this is how we are before God. I have forgiven you everything, everything .."

terça-feira, dezembro 28, 2004  
Anonymous Anónimo said...

Was the little girl in the red coat a real person?

Steven Spielberg did not knowingly base the girl on an actual person. However, after seeing the film, holocaust survivor Roma Ligocka (pictured left - click to enlarge) identified with some of the film's characters. In the Krakow ghetto, Ligocka was known to everyone by the strawberry-red coat she always wore. This encouraged her to write a memoir of her experiences. The memoir is available to read on the right.

terça-feira, dezembro 28, 2004  
Anonymous Anónimo said...

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sexta-feira, fevereiro 16, 2007  

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