domingo, julho 10, 2005

A Fleuma

Daqui a pouco, entrará no ar, nas vossas casas, nos cafés onde foram tomar uma bica porque o café de casa sabe a pó, e nos centros comerciais que o belmiro não deixa fechar para que os portugueses possam substituir a maleabilidade acumulada da mulher pelo sossego rijo dos modelos das montras, um sujeito de fato azul escuro e camisa azul clara, aberta no peito. Tem cabelo castanho claro e está a tentar deixar crescer patilhas que, de mistura já impura com pêlos de barba, parecem louras. Passei há pouco por ele, e pensei: este tipo, de fato azul escuro e camisa azul clara, aberta no peito, com patilhas e tal e tal, é tão mangas que só pode ser tuga. Não tive que esperar muito para confirmar a minha suspeita auto-xenófoba.

Puxou o sujeito, que vos entrará nas casas, nos cafés, e no centro comercial, de um olímpico escarro, que em boa hora interrompeu no caminho da faringe à boca. Perguntou se estava giro a uma rapariga indiana, e pediu para o focarem de lado, de modo a aparecer o Newsagent. Quiosque de superior importância para o quotidiano do vosso escriba. Foi lá que percebi que não só há ingleses a trabalhar em sítios não qualificados da capital, como o sotaque mais cockney é invariavelmente sintomático da mesma doença que ataca os homens das obras em Portugal: a esmagadora maioria das revistas que vende são porno, bem ao gosto inglês - gajas que se sentarem num parafuso rebentam. E está sempre pronto para o próximo piropo, e para a próxima piada fácil. Quando tenho tempo para o ouvir compro lá o jornal. Quando me apetece bater em alguém evito-o. Mas porque é que o sujeito que vos vai entrar em casa, nos cafés, no centro comercial, queria focar o Newsagent? Bem vos digo que é um mistério. Tão grande como a própria existência de dois cantos defronte a King´s Cross: o canto dos pobres e o canto da CNN. O canto dos pobres fica mesmo à frente de uma vedação que protege os trânseuntes do sempre caótico trânsito da Euston Road. A vedação é muito alta, pelo que a rapariga grega, que está ao lado do sujeito português, é filmada em cima de um caixote. Do outro lado em relação ao sujeito português está uma jornalista indonésia, provando a subjectividade dos cânones internacionais de estética. É velha, muito velha, e bastante baixa. Este é o canto dos pobres. O canto da CNN tem um jornalista que trabalha para uma cadeia americana - a julgar pelo sotaque - mas que, por não ter conseguido identificar qual, chamei-lhe CNN.

No próprio dia dos ataques bombistas fui dar uma volta, e pude ver como os ingleses passam ao lado da morte - da mesma forma que passam ao lado da vida. Os pubs estavam cheios às 6 da tarde, como sempre. Um casal de turistas americano perguntava, em frente à estação onde, oito horas antes, tinham morrido umas 20 pessoas, a direcção para rua tal. Perguntavam-no ao chefe dos bombeiros, que respondia, calmamente, de dentro do carro.

É natural que, quem nunca viveu em Londres, fale de fleuma, de frieza, até de coragem. Parece-me, isso sim, que os portugueses são muito mais agarrados à vida que os ingleses. Não é que a vida não preocupe os ingleses, mas a questão é que essa não é a sua única preocupação. Os ingleses, além da vida, também querem saber de Cricket, de futebol e de cerveja.

O conservadorismo significa que as pessoas passam para que as vidas fiquem.

Um pequeno pormenor que poderia destruir esta crua observação é a venda, em algumas livrarias, de manuais intitulados: The Counter-Terrorist Guide; a help-yourself book to fight terrorism. Por coincidência, só os encontrei em livrarias do centro. Onde os turistas passam. E fica-lhes a fleuma. E o dinheiro.

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