quinta-feira, julho 14, 2005

Live 8.

"A miséria alheia é a sorte de Bob Geldof. Em 1984, o cavalheiro viu um programa sobre a fome na Etiópia e, em vez de mudar de canal, decidiu chamar a atenção dos media através de uma cantiga. A cantiga, que reuniu todo o esterco da pop britânica, foi lançada em Dezembro e lamentava que os infelizes etíopes não soubessem que estávamos no Natal. Visto que os infelizes etíopes são maioritariamente muçulmanos ou animistas, era como dedicar o ser benfiquista à claque do Porto. Ninguém se importou: DO They Know It´s Christmas? Vendeu imenso e convenceu Bob Geldof de que tinha uma missão a desempenhar.

A missão consistia em nutrir milhões de africanos e em massacrar, com refugo vagamente "musical", milhões de ocidentais. O Live Aid, realizado em 1985, cumpriu a segunda tarefa. Embora Bob Geldof tenha assegurado que os lucros dos concertos foram inteirinhos "para as pessoas que precisam", não se notou muito que a pessoa mais precisada se chamava Mengistu Haile Mariam, o ditador local, a quem o dinheiro veio a calhar para fortalecer as tropas. Excepto pelos soldados, que passaram a comer indiscutivelmente melhor, o etíope médio não sentiu grandes abalos na dieta. Quer dizer, na verdade, sentiu: a fome, que é um instrumento usado na região para conter eventuais rebeliões, aumentou, graças a um exército mais capaz de a implementar. Graças ao Live Aid.

Vinte anos passados, a manutenção do drama africano e as prováveis debilidades na sua conta bancária levam Bob Geldof a reincidir. O Live 8 é o Live Aid que, em lugar de recolher fundos, procura motivar os "países ricos" a perdoar a dívida dos "países pobres". Mas a essência da caridade mantém-se, e terminará fatalmente no reforço bélico dos dementes que mandam em África. Ao contrário daquilo que Bob Geldof finge acreditar (e em que alguns tontos acreditam de facto), o problema de África não passa pela escassez alimentar: passa pela escassez democrática. Removido o socialismo despótico que é regra de Angola ao Zimbabwe, a coisa só poderá progredir. Troque-se Madonna pela privatização da propriedade, os U2 pela liberalização do comércio, a Mariza pela abolição dos obstáculos fiscais à iniciativa particular, os Pink Floyd pelo fim das guerras civis, Bob Geldof por eleições justas e pronto.

O engraçado é que o circo do Live 8 continua a culpar as democracias, o poder do mercado e a globalização, justamente o que a África não tem e necessita. E tudo isto ante a complacência de Blair, Bush e restantes senhores do mundo livre. Aliás, excessivamente livre: há pelo menos 20 anos que o sr. Geldof devia estar preso."

Alberto Gonçalves na Sábado.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

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quarta-feira, fevereiro 14, 2007  

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