O Iraque.
"O atentado da passada quarta-feira contra a Mesquita Dourada de Samarra, um lugar de culto para os xiitas, e as retaliações contra os sunitas, puseram o Iraque muito próximo da guerra civil. Como normalmente acontece, para muitos, os principais culpados não são os que recorrem à violência, mas os americanos. Dito de outro modo, tudo começou com a guerra iniciada pelos Estados Unidos. Desta análise, conclui-se que tudo estaria muito melhor se Washington tivesse deixado Saddam no poder. Recordemos então como estavam o Iraque e a região antes da guerra. Deixando de lado a natureza brutal do regime e os métodos a que recorria para se manter no poder (como é fácil constatar a violação sistemática dos direitos mais elementares de milhões de iraquianos, para muitos que estão dispostos a tudo fazer para defender a liberdade de expressão dos ocidentais, são simples detalhes), vamos às questões estratégicas. Antes de mais, desde a libertação do Kuwait em 1991, Saddam estava no poder a prazo.
Não tinha legitimidade internacional, como demonstram as mais de 10 Resoluções aprovadas pelo Conselho de Segurança, durante os anos de 1990, a condenar o seu comportamento. Constituía uma ameaça aos seus vizinhos, o que exigia uma forte presença militar norte-americana na Arábia Saudita, com implicações negativas para a estabilidade política do reino. Além disso, quase um terço do território iraquiano, grande parte do Curdistão, já estava sob ocupação internacional, dando origem a uma ”região independente”. Ou seja, o Iraque estava numa situação insustentável.
É verdade que estava ”pacificado”, mas ninguém sabe qual seria o comportamento de Saddam no mundo-pós 11 de Setembro. Quais teriam sido as implicações da subida do preço do petróleo para o poder iraquiano? Como teria o regime reagido ao programa nuclear do seu grande rival regional, o Irão? Que ligações teria estabelecido com os grupos terroristas? Estaria disposto a apoiar ataques terroristas a cidades europeias? É impossível responder a estas questões, mas o passado de Saddam sugere que teria certamente aproveitado a instabilidade internacional em seu benefício. Não podemos deixar que as dificuldades actuais no Iraque criem ilusões sobre os supostos benefícios internacionais da velha ”estabilidade iraquiana”. Apesar de tudo, não vale a pena ter saudades de Saddam.
Bem sei que muitos apenas criticam a imprudência, ou mesmo o idealismo, dos americanos, sem verterem nenhuma lágrima pelo fim do regime Baathista. Esta crítica parte do pressuposto de que o Iraque, ou pela imaturidade democrática da sua população, ou pela diversidade religiosa e étnica, só pode ter estabilidade com uma ditadura. Assim uma mudança de regime provocaria inevitavelmente uma guerra civil. Admitindo que esta visão seja correcta – as causas da guerra civil são internas – os Estados Unidos não são, em última análise, os culpados, mas apenas o factor que provocou um conflito que mais tarde (morte de Saddam) ou mais cedo (revolta interna contra o regime) seria inevitável, mesmo sem uma intervenção externa.
Há, no entanto, alguns dados que desafiam a tese da inevitabilidade da guerra civil. Por um lado, a identidade iraquiana, e não apenas shiita, sunita ou curda, é muito mais forte do que se julga. Por outro lado, como indica a participação nas várias eleições, a maioria dos iraquianos pretende viver em paz. A minoria que pretende a guerra poderá ter sucesso, mas não é unicamente composta pelos defensores do antigo regime. A violência resulta, em larga medida, da acção de grupos terroristas compostos maioritariamente por estrangeiros e não por iraquianos. A ”Jihad global” está a concentrar-se no Iraque, mas se Saddam continuasse no poder estaria a actuar noutros territórios. A acontecer, a guerra civil no Iraque não resulta das diferenças étnicas ou religiosas, nem de uma nostalgia em relação aos dias de Saddam, mas da radicalização do mundo árabe a que se tem assistido desde o 11 de Setembro. E seria demasiado simples acreditar que Washington é o responsável por esse extremismo.
A consequência mais negativa das dificuldades iraquianas poderá ser uma retirada prematura das tropas americanas e o reforço das tendências isolacionistas norte-americanas. Mas mesmo nesse caso, seria prematuro falar de uma ”derrota do Ocidente”. Muitos fizeram um prognóstico semelhante a propósito do Vietnam, em 1974, e menos de vinte anos depois desaparecia a União Soviética. Mal do Ocidente se não tiver força suficiente para resistir a desaires diplomáticos e estratégicos."
João Marques de Almeida
Não tinha legitimidade internacional, como demonstram as mais de 10 Resoluções aprovadas pelo Conselho de Segurança, durante os anos de 1990, a condenar o seu comportamento. Constituía uma ameaça aos seus vizinhos, o que exigia uma forte presença militar norte-americana na Arábia Saudita, com implicações negativas para a estabilidade política do reino. Além disso, quase um terço do território iraquiano, grande parte do Curdistão, já estava sob ocupação internacional, dando origem a uma ”região independente”. Ou seja, o Iraque estava numa situação insustentável.
É verdade que estava ”pacificado”, mas ninguém sabe qual seria o comportamento de Saddam no mundo-pós 11 de Setembro. Quais teriam sido as implicações da subida do preço do petróleo para o poder iraquiano? Como teria o regime reagido ao programa nuclear do seu grande rival regional, o Irão? Que ligações teria estabelecido com os grupos terroristas? Estaria disposto a apoiar ataques terroristas a cidades europeias? É impossível responder a estas questões, mas o passado de Saddam sugere que teria certamente aproveitado a instabilidade internacional em seu benefício. Não podemos deixar que as dificuldades actuais no Iraque criem ilusões sobre os supostos benefícios internacionais da velha ”estabilidade iraquiana”. Apesar de tudo, não vale a pena ter saudades de Saddam.
Bem sei que muitos apenas criticam a imprudência, ou mesmo o idealismo, dos americanos, sem verterem nenhuma lágrima pelo fim do regime Baathista. Esta crítica parte do pressuposto de que o Iraque, ou pela imaturidade democrática da sua população, ou pela diversidade religiosa e étnica, só pode ter estabilidade com uma ditadura. Assim uma mudança de regime provocaria inevitavelmente uma guerra civil. Admitindo que esta visão seja correcta – as causas da guerra civil são internas – os Estados Unidos não são, em última análise, os culpados, mas apenas o factor que provocou um conflito que mais tarde (morte de Saddam) ou mais cedo (revolta interna contra o regime) seria inevitável, mesmo sem uma intervenção externa.
Há, no entanto, alguns dados que desafiam a tese da inevitabilidade da guerra civil. Por um lado, a identidade iraquiana, e não apenas shiita, sunita ou curda, é muito mais forte do que se julga. Por outro lado, como indica a participação nas várias eleições, a maioria dos iraquianos pretende viver em paz. A minoria que pretende a guerra poderá ter sucesso, mas não é unicamente composta pelos defensores do antigo regime. A violência resulta, em larga medida, da acção de grupos terroristas compostos maioritariamente por estrangeiros e não por iraquianos. A ”Jihad global” está a concentrar-se no Iraque, mas se Saddam continuasse no poder estaria a actuar noutros territórios. A acontecer, a guerra civil no Iraque não resulta das diferenças étnicas ou religiosas, nem de uma nostalgia em relação aos dias de Saddam, mas da radicalização do mundo árabe a que se tem assistido desde o 11 de Setembro. E seria demasiado simples acreditar que Washington é o responsável por esse extremismo.
A consequência mais negativa das dificuldades iraquianas poderá ser uma retirada prematura das tropas americanas e o reforço das tendências isolacionistas norte-americanas. Mas mesmo nesse caso, seria prematuro falar de uma ”derrota do Ocidente”. Muitos fizeram um prognóstico semelhante a propósito do Vietnam, em 1974, e menos de vinte anos depois desaparecia a União Soviética. Mal do Ocidente se não tiver força suficiente para resistir a desaires diplomáticos e estratégicos."
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