A esquerda e os intelectuais
"Há muito que estamos a assistir à morte do “intelectual”, do “filósofo”, do “maître à penser”.
Está a dar que falar uma entrevista do filósofo francês Alain Badiou ao “Le Monde”, onde declara o fim – desejado – do “intelectual de esquerda”. A coisa parece ganhar mais sentido após a debandada geral de ilustres figuras do PS francês para o projecto sarkoziano. De qualquer modo, o caso intelectualmente mais flagrante, depois de algumas viragens já verificadas durante a corrida presidencial de Ségolène Royal e do caso Kouchner, é a transmigração do pós-moderno ex-ministro socialista da cultura Jack Lang. Diz Badiou: “esta adesão a M. Sarkozy simboliza a possibilidade, para intelectuais e filósofos, de serem, doravante, reaccionários clássicos ‘sans hésitation ni murmure’, como diz o regulamento militar. (…) “Nós vamos assistir - ao que eu anseio – à morte do intelectual de esquerda, que vai soçobrar ao mesmo tempo que toda a esquerda, antes de renascer das suas cinzas como a fénix”. Aqui, a verdadeira questão consistiria em saber o que é a esquerda, não antes de saber em que consistiria o ser intelectual. Na França de hoje, o problema é complexo, reconheçamos.
Mas, em boa verdade, há muito que estamos a assistir à morte do “intelectual”, do “filósofo”, do ‘maître à penser’. Que, na verdade, tem o seu ADN à esquerda, apesar dos excelentes Aron(s). Permitam-me recordar que, disto, muito falei no meu livro de 1999, “Os intelectuais e o Poder” (Lisboa, Fenda) - que acabaram os Sartre(s). E que ele foi, talvez, o último dos “maîtres à penser”. Que estes acabaram ao mesmo tempo que as “grandes narrações”. Que acabaram quando acabou a densificação do tempo vivido, a identificação territorial dos percursos de vida, a exaltação da memória. E quando o princípio da esperança se desligou do futuro. Quando o presente se impôs como ditadura e as ideologias se diluíram, sendo substituídas por fugazes e superficiais estilos de vida.
A verdade é que os intelectuais não eram simplesmente autores de livros ou de ensaios. Eram, isso sim, autores de ideologias, de mundividências, de concepções do mundo. Demiurgos. Eram artífices de ideias projectadas no futuro, mas com capacidade de impulso sobre o presente, como se fossem forças materiais, físicas, sujeitas à lei da gravidade. Substituíam-se, com eficácia, às religiões e projectavam a laicidade à categoria de concepção do mundo. Construíam vastas redes de pertença, onde se reconheciam inteiros grupos sociais. O pensamento tornava-se norma de comportamento, atitude, ética, sentido.
Nada disto subsiste. Tudo se fragmentou. Até as causas, que passaram a ser especialidades de uns tantos profissionais. O fim das grandes narrações, a ditadura do presente, o triunfo do inorgânico, a velocidade, o tempo como sucessão de instantes absolutos, o indivíduo como função do inorgânico, o império do simulacro, tudo isto gerou uma nova rede social onde não há lugar para os velhos intelectuais. O novo intelectual é o ‘fast-thinker’. O “Lucky Luke” do pensamento e da palavra. O velho ‘maître-à-penser’ deu lugar ao novo ‘prêt-à-penser’, que ocupa os interfaces da comunicação como seu ambiente natural. Está por todo o lado e ao mesmo tempo. É um clone de si próprio. Fala de tudo como se de tudo fosse especialista. E ao ritmo da comunicação electrónica. O ‘sound byte’ é a medida do seu discurso. Ele é uma espécie de centauro: meio intelectual meio publicitário. Assume o meio onde comunica como “púlpito” onde exerce o poder da palavra, olhos nos olhos com o público, essa “multidão solitária” que se une em torno do terminal electrónico onde ele pontifica.
Este é o novo intelectual ‘tout court’. Já nem de esquerda nem de direita. Mais do que de esquerda ou de direita, o novo intelectual é orgânico do inorgânico, do simulacro, da velocidade, da emoção curta e eficaz, do discurso binário, da urgência do presente, do negativo. Não cria nem representa ideologias ou concepções do mundo. Representa-se a si próprio e age como se fosse o umbigo do mundo.
Ora, quando a política começa a exibir excessivas afinidades com este universo discursivo dos novos intelectuais do vídeo, torna-se necessário reivindicar o regresso em força do orgânico, contra os cavaleiros do simulacro"
João de Almeida Santos
Está a dar que falar uma entrevista do filósofo francês Alain Badiou ao “Le Monde”, onde declara o fim – desejado – do “intelectual de esquerda”. A coisa parece ganhar mais sentido após a debandada geral de ilustres figuras do PS francês para o projecto sarkoziano. De qualquer modo, o caso intelectualmente mais flagrante, depois de algumas viragens já verificadas durante a corrida presidencial de Ségolène Royal e do caso Kouchner, é a transmigração do pós-moderno ex-ministro socialista da cultura Jack Lang. Diz Badiou: “esta adesão a M. Sarkozy simboliza a possibilidade, para intelectuais e filósofos, de serem, doravante, reaccionários clássicos ‘sans hésitation ni murmure’, como diz o regulamento militar. (…) “Nós vamos assistir - ao que eu anseio – à morte do intelectual de esquerda, que vai soçobrar ao mesmo tempo que toda a esquerda, antes de renascer das suas cinzas como a fénix”. Aqui, a verdadeira questão consistiria em saber o que é a esquerda, não antes de saber em que consistiria o ser intelectual. Na França de hoje, o problema é complexo, reconheçamos.
Mas, em boa verdade, há muito que estamos a assistir à morte do “intelectual”, do “filósofo”, do ‘maître à penser’. Que, na verdade, tem o seu ADN à esquerda, apesar dos excelentes Aron(s). Permitam-me recordar que, disto, muito falei no meu livro de 1999, “Os intelectuais e o Poder” (Lisboa, Fenda) - que acabaram os Sartre(s). E que ele foi, talvez, o último dos “maîtres à penser”. Que estes acabaram ao mesmo tempo que as “grandes narrações”. Que acabaram quando acabou a densificação do tempo vivido, a identificação territorial dos percursos de vida, a exaltação da memória. E quando o princípio da esperança se desligou do futuro. Quando o presente se impôs como ditadura e as ideologias se diluíram, sendo substituídas por fugazes e superficiais estilos de vida.
A verdade é que os intelectuais não eram simplesmente autores de livros ou de ensaios. Eram, isso sim, autores de ideologias, de mundividências, de concepções do mundo. Demiurgos. Eram artífices de ideias projectadas no futuro, mas com capacidade de impulso sobre o presente, como se fossem forças materiais, físicas, sujeitas à lei da gravidade. Substituíam-se, com eficácia, às religiões e projectavam a laicidade à categoria de concepção do mundo. Construíam vastas redes de pertença, onde se reconheciam inteiros grupos sociais. O pensamento tornava-se norma de comportamento, atitude, ética, sentido.
Nada disto subsiste. Tudo se fragmentou. Até as causas, que passaram a ser especialidades de uns tantos profissionais. O fim das grandes narrações, a ditadura do presente, o triunfo do inorgânico, a velocidade, o tempo como sucessão de instantes absolutos, o indivíduo como função do inorgânico, o império do simulacro, tudo isto gerou uma nova rede social onde não há lugar para os velhos intelectuais. O novo intelectual é o ‘fast-thinker’. O “Lucky Luke” do pensamento e da palavra. O velho ‘maître-à-penser’ deu lugar ao novo ‘prêt-à-penser’, que ocupa os interfaces da comunicação como seu ambiente natural. Está por todo o lado e ao mesmo tempo. É um clone de si próprio. Fala de tudo como se de tudo fosse especialista. E ao ritmo da comunicação electrónica. O ‘sound byte’ é a medida do seu discurso. Ele é uma espécie de centauro: meio intelectual meio publicitário. Assume o meio onde comunica como “púlpito” onde exerce o poder da palavra, olhos nos olhos com o público, essa “multidão solitária” que se une em torno do terminal electrónico onde ele pontifica.
Este é o novo intelectual ‘tout court’. Já nem de esquerda nem de direita. Mais do que de esquerda ou de direita, o novo intelectual é orgânico do inorgânico, do simulacro, da velocidade, da emoção curta e eficaz, do discurso binário, da urgência do presente, do negativo. Não cria nem representa ideologias ou concepções do mundo. Representa-se a si próprio e age como se fosse o umbigo do mundo.
Ora, quando a política começa a exibir excessivas afinidades com este universo discursivo dos novos intelectuais do vídeo, torna-se necessário reivindicar o regresso em força do orgânico, contra os cavaleiros do simulacro"
João de Almeida Santos

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