quarta-feira, julho 23, 2008

TODOS DIFERENTES, QUASE TODOS IGUAIS

"No Verão de 1996, uns tantos habitantes de Oleiros, Vila Verde, expulsaram, com modos pouco civilizados, os ciganos que ali viviam em barracas. Se bem recordo, a história provocou um estardalhaço danado. A parcela do país que tem voz nos média descobriu num ápice o fenómeno subjacente aos incidentes e, sem surpresas, indignou-se. Não houve complacência com a origem social dos membros das milícias, ou com a circunstância da comunidade cigana de Oleiros recusar em larga medida qualquer esforço de integração excepto, para alguns dos seus elementos, a integração resultante do tráfico de droga.

Talvez não houvesse complacência possível. Os actos contra os ciganos do Minho presumiam que a transacção de estupefacientes, a construção clandestina e a carência de boas maneiras são atributos exclusivos da etnia em causa. Sucede que não são, e o luminoso deputado do PS que, à época, teorizou que "o traficante lusitano [leia-se branco] não perturba o meio rural" apenas contribuiu para refinar a estupidez de tudo aquilo. E aquilo, na opinião das boas consciências e provavelmente na verdade, foi uma manifestação racista, agravada pela indiferença ou colaboração das autoridades.

A maçada é que as boas consciências são voláteis e a verdade descartável. Embora muito mais violentos que os de 1996, os episódios recentes num bairro camarário de Loures, onde, após tiroteio, ciganos acabaram corridos das suas casas por vizinhos pretos, não têm, pelos vistos, vestígios de racismo. Ao que li, parece que o recurso ao conceito não resolve nada (em Oleiros resolveu?). Também parece que a polícia não é para ali chamada (em Oleiros exigiam-na com urgência). Perceba-se a distinção: se descendentes de rústicos minhotos maltratam o cigano à mão, a culpa é dos minhotos; se descendentes de cabo-verdianos espantam o cigano a tiro, a culpa é do planeamento urbano, dos guetos, da pobreza, da desigualdade, do capitalismo, da sociedade, minha e, não pense que escapa, sua. Um caso pedia firmeza, o outro pede sociologia. Sociologia e delírios.

Compreende-se. Olhar a realidade da Quinta da Fonte implicaria abalar inúmeros mitos que consolam almas e fundamentam políticas. Primeiro, o mito do "multiculturalismo", de acordo com o qual a humanidade em peso nasceu para se amar e, não fora a apetência discriminatória de alguns "caucasianos" desagradáveis, amar-se-ia sem descanso. Depois, o mito da superioridade moral do pobre, que faz dele uma óptima vítima mas um embaraçoso agressor. Por fim, o mito da habitação dita social, que leva as autarquias a distribuir casas gratuitas a pretexto da "solidariedade" e a troco de votos.

Este amável paternalismo fomenta o exacto caldo que está na origem dos acontecimentos de Loures. De uma retorcida maneira, a culpa é mesmo da sociedade, que enche certas pessoas de direitos e isenta-as de deveres, condenando-as, no mínimo, a uma existência humilhante e desumana. No máximo, empurra-as para a balbúrdia criminosa que é moeda corrente em bairros assim.

À hora em que escrevo, a Quinta da Fonte prossegue o seu quotidiano particular, agora com predominância da população preta, que empunha armas e jura não permitir o regresso dos ciganos. Com o respectivo arsenal bélico guardado nos carros, os ciganos acampam à porta da Câmara de Loures, a queixarem-se de plasmas roubados e a reclamarem residência em local da sua predilecção. Nenhum dos participantes na batalha do passado fim-de-semana ficou detido. Nenhum perdeu os subsídios com que o Estado lhes recompensa a conduta. A governadora civil de Lisboa encerrou o assunto com o anúncio de "estratégias de paz": uma marcha colectiva e a pintura de um mural. De facto, o principal problema da Quinta da Fonte não é o racismo
."

Alberto Gonçalves

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