quarta-feira, julho 09, 2008

Uma Europa sem guião

"Os líderes da União Europeia passaram parte da última década a negociar tratados. Estamos todos cansados de tratados.

Pode um país perder o estatuto de estado-membro da UE? A resposta é "não". Pode a não ratificação de um tratado por um único país impedir que o mesmo entre em vigor? A resposta é "sim". Estas afirmações, embora verdadeiras, são irrelevantes. Referi numa crónica anterior que é possível excluir um estado-membro da União, desde que haja vontade política. Presumo que esta ideia tenha causado alguma consternação, pelo que vou hoje explicar em detalhe como isto pode acontecer.

Para começar, ainda não estamos nessa fase, nem é provável que venhamos a estar nos tempos mais próximos. Decorre actualmente um processo político para persuadir os irlandeses a realizarem um segundo referendo. A decisão franco-alemã de associar um novo alargamento à ratificação do Tratado de Lisboa não deve ser subestimada. Deve ser encarada como uma advertência: o regresso ao Tratado de Nice não está isento de riscos, contrariamente ao que algumas pessoas gostariam de pensar.

Se a ameaça do alargamento vai, ou não, impressionar os eurocépticos irlandeses é uma incógnita. Mas duvido. Creio que quem votou "não" está mais preocupado com questões que afectam directamente o seu país, como a manutenção de um comissário irlandês, a parte do orçamento comunitário que lhes vai caber ou se alguém vai interferir nos impostos sobre as empresas.

A Europa de hoje é uma Europa sem guião. Mas está fora de questão continuar com Nice ou negociar um novo tratado. Lembro que os líderes da União Europeia (UE) passaram boa parte da última década a negociar tratados. Estamos todos cansados de tratados. Além disso, quem arriscaria enveredar por aí se todos os novos tratados estão sujeitos ao "circo" da ratificação?

Suspeito que vão encontrar uma forma de aplicar o Tratado Lisboa sem os não ratificantes, propondo-lhes um acordo de "saída e readesão". Seria a opção menos fracturante, mas, infelizmente, é uma das menos realistas, pois implica a sua anuência – a qual está longe de garantida. No caso da Irlanda é possível que obrigue a dois referendos: um de saída e outro de readesão. Não sendo possível, as opções existentes envolvem diferentes graus de separação involuntária. Por exemplo, todos os estados se manteriam formalmente na UE com base no Tratado de Nice, mas os ratificantes iriam organizar-se em áreas de cooperação exteriores à União e às suas instituições – ao nível da política externa, da imigração, do governo económico e, quem sabe, da energia e ambiente. E poderiam fazê-lo ao abrigo do Tratado de Lisboa ou de quaisquer outras regras acordadas entre si.

A saída da UE permitiria evitar vetos ou minorias de bloqueio dos que ficassem para trás. Todavia, os procedimentos de cooperação reforçada previstos na actual lei europeia não bastariam para materializar uma cooperação política significativa entre um subconjunto de estados-membro. E o facto de nunca terem sido usados é uma das razões pelas quais o Tratado de Lisboa se tornou necessário.

Recusar o tratado seria uma opção delicada e complexa – e profundamente intergovernamental. Mais: careceria de um enquadramento institucional, de transparência e de processos de decisão democráticos. Com o tempo, talvez esses diferentes grupos de integração intergovernamental se reunissem novamente sob o chapéu da UE, mas nunca por um período tão longo como aquele em que o Tratado de Nice esteve em vigor. Ou talvez seguissem o seu caminho fora da União.

A UE manteria as actuais responsabilidades sobre o mercado interno, a política da concorrência e algumas outras áreas, mas sem fundos suficientes para prosseguir novos objectivos estratégicos. Em suma, iria murchar. Mas existe uma derradeira ameaça, isto é, o divórcio permanente. Os ratificantes do Tratado de Lisboa abandonariam formalmente a UE, reagrupando-se sob uma organização rival. Na realidade, isto não constitui uma verdadeira opção. Trata-se, antes, do único cenário possível quando se esgotam todas as opções, da escolha estratégica de último recurso. Mas tudo indica que estamos longe deste cenário.

Suspeito que haja outras opções escondidas nas gavetas da política europeia. Em comum têm o facto de afastarem os não ratificantes do processo de integração europeia. Saber se são estes que abandonam formalmente a UE ou se é a UE que os abandona é, no fundo, irrelevante
. "

Wolfgang Munchau

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