sexta-feira, agosto 15, 2008

O romance de mercado tem um preço elevado

"O crescimento económico anual em Portugal é medíocre, pouco ultrapassando, em média, 1% desde o início do novo milénio; o défice externo andará à volta de 11% do PIB no próximo ano e indicia uma inserção internacional crescentemente dependente e que se entregou às forças do mercado sem as procurar governar; a taxa de desemprego arrisca-se a permanecer duradouramente bem acima de 7%, num país com uma rede de protecção social fraca, e constitui-se em poderoso mecanismo disciplinar para forçar uma parte importante dos trabalhadores a aceitar uma continuada redução nos seus níveis de vida; o injustificado nível de desigualdades salariais e de rendimentos, quase sem precedentes na Europa, torna qualquer discurso que defenda o famoso "apertar do cinto" salarial, porque, afinal de contas, "estamos todos no mesmo barco", um exercício que oscila entre o cinismo e a insensibilidade; a taxa de pobreza, elevada e persistente, atinge um segmento importante das classes trabalhadoras, que estão também cada vez mais expostas à precariedade; a lotaria da vida, ou seja, o contexto socio-económico onde se nasce, determina, mais do que em qualquer outro país da Europa, aquilo que os indivíduos vão ser e fazer nas suas vidas, transformando, a par com o escândalo quase invisível da pobreza infantil, todo o discurso sobre a recompensa do mérito e do esforço numa grotesca farsa.

Enfim, o retrato da actual configuração do capitalismo português, depois de um longo ciclo, com vinte anos, de constante liberalização, de maciças privatizações e de irresponsável perda de instrumentos de política económica, sem contraponto em novos mecanismos de política pública dignos desse nome à escala da União Europeia, revela que a fractura social e a estagnação económica são os dois principais capítulos do romance de mercado, transformado em guia para a política, na semiperiferia da economia global.

A maioria das nossas elites políticas, económicas e intelectuais comprou este romance a um preço em conta para si, mas muito elevado para o País. Num típico movimento de fuga em frente, essas elites afirmam agora: "falhámos porque o romance não foi aplicado com suficiente afinco; só mais um esforço e tudo correrá pelo melhor no melhor dos mundos". Como afirmou o filósofo liberal Karl Popper, é típico das ideologias puras não serem passíveis de confrontação com a impureza da realidade.

As privatizações sem rei nem roque serviram apenas para reconstruir grupos económicos predominantemente "rentistas", especializados no sector dos bens não-transaccionáveis? Prossiga-se então com este processo, entregando-se agora aos privados o controlo de infra-estruturas cruciais para o desenvolvimento do País. O euro forte mina a competitividade da nossa economia, prejudicando os sectores industriais, tal como a sobre-apreciação do escudo, no quadro da célebre convergência nominal, já o tinha feito nos anos noventa? O euro e o péssimo governo económico que lhe subjaz não se discutem.

Uma parte da nossa pouco qualificada classe empresarial continua viciada na mediocridade dos baixos salários, que reduz o incentivo para a modernização económica, e em relações laborais demasiado autoritárias, devido à fragilidade ou ausência de contra-poderes sindicais? Prossiga-se então com reformas da legislação laboral calibradas para enfraquecer a única central sindical que em Portugal ainda tem um mínimo de representatividade e de combatividade e para quebrar as solidariedades no mundo do trabalho.

A notável evolução dos salários dos gestores de topo e a desigualdade salarial, que resulta da excessiva fragmentação do processo de determinação dos salários e das condições de trabalho, mina a motivação para o trabalho bem feito da maioria, corrói as relações de confiança e cooperação, obriga a fazer mais despesas improdutivas em mecanismos de controlo e de monitorização? A desigualdade é um preço a pagar pela criação de incentivos que mais tarde ou mais cedo, é só termos fé, libertarão as energias empreendedoras dos nossos gestores, já que as práticas de economias muito mais igualitárias e competitivas, onde menos é deixado à sorte das assimétricas relações sociais dentro de cada empresa, não interessam para nada.

As perguntas multiplicam-se e as respostas são cada vez mais frágeis. A única questão que importa é saber até quando durará este romance das elites transformado em pesadelo económico num dos países mais desiguais da Europa. Isto é "apenas" uma questão de correlação das forças políticas e sociais em presença, ou seja, uma questão de poder. Porque intelectualmente este romance, que não passa no crivo da veracidade, está esgotado
. "

João Rodrigues

Divulgue o seu blog!