terça-feira, março 10, 2009

A CEGUEIRA DO HOMEM BRANCO

"O dr. Gomes Cravinho, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, pediu aos militares guineenses para não serem "mesquinhos" e à Guiné-Bissau o "pleno respeito pela normalidade institucional".

A pertinência dos apelos percebe-se melhor se levarmos em conta que foram proferidos horas depois do assassínio de Nino Vieira. Parece que após demolirem à bomba a residência do presidente, e de este ter emergido dos destroços, os soldados insurgentes aproveitaram para o espancar, o furar com rajadas de metralhadora, o cortar à catanada e o decapitar. A ordem dos correctivos varia de acordo com as fontes, mas é inegável o propósito mesquinho, quase maldoso, do exercício. Na mesma linha geopolítica, presumo que o dr. Gomes Cravinho classifique os massacres no Ruanda de "irritantes" e o genocídio no Darfur de "aborrecido".

Não será o único a fazê-lo. O Ocidente em geral tem por hábito cobrir de eufemismos uma região em que, como a ascensão do próprio Nino Vieira e de inúmeros déspotas regularmente mostram, a "normalidade institucional" se constrói a sangue. Por recorrente que seja, o facto é sempre novidade para os media daqui, que destroçados pela mesquinhez de alguns indígenas começaram anteontem a desconfiar (com mágoa) de que a Guiné é um "Estado falhado".

No mínimo, é uma intuição tardia. A ONG Fund for Peace desenvolveu um índice que justamente mede o grau de falhanço dos estados e a sua tendência para a desagregação. Assim, cada país é pontuado e integrado numa de quatro categorias de risco: alarme, alerta, moderado, estável. Em 2008, nenhuma das nações africanas pertence ao restrito grupo dos "estáveis", nenhuma, com a excepção das ilhas Maurícias, pertence ao grupo dos "moderados", todas se encontram nos grupos de "alerta" e de "alarme", onde aliás a Guiné-Bissau se situa atrás de outros dezoito países africanos ainda mais dados a transformar a chacina num modo de vida. Em suma, falhada é a África inteira.

A dificuldade dos ocidentais em reconhecer uma mera evidência prova que o paternalismo pós-colonial se alheou mais da realidade que o racismo colonialista. Se este nunca se maçou com uma tragédia para a qual contribuiu directamente, o paternalismo só vê a tragédia a custo, preferindo manter a risonha ficção de um continente normal, dividido em estados normais liderados por governos normais, afinal o inevitável resultado dos encantadores processos de independência.

O delírio teria graça se, à sua revelia, em África não vivessem, ou morressem, centenas de milhões de infelizes, no fundo irrelevantes para os criminosos que mandam por lá e inexistentes para os optimistas que pairam por cá
."

Alberto Gonçalves

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