domingo, outubro 21, 2012

Gaspar e as lições políticas de Salazar

"Através da subjugação da política às finanças Portugal está a aniquilar a sua classe média, essência do espaço democrático, do consumo interno, da valorização do trabalho e do esforço e da solidariedade. Para o núcleo de Vítor Gaspar, Portugal é um país de ricos encapotados. Estamos a fazer o trajecto ao contrário: depois do Cabo da Boa Esperança estamos agora a tentar ultrapassar o Cabo das Tormentas. O Adamastor, fruto das exigências da troika e de o Governo não conhecer a realidade do país que está a modelar ao seu Excel, ameaça afundar esta nau Catrineta.

O OE de 2013, tal como antes a tentativa de mudar a TSU, começa a demonstrar várias coisas: o Governo (e a sua mentora, a troika) deseja experimentar neste país a criação de um novo modelo económico, social e também político que nada tem a ver com o Estado social e a democracia que se criou, melhor ou pior, nas últimas décadas. Os novos desafios do mundo e da Europa estão a ter respostas ao nível do passado. Que Vítor Gaspar não conheça o país real, porque viveu sempre em gabinetes de estudos, compreende-se. Que Passos Coelho não o perceba é mais grave.

Até porque isso está a implicar a destruição da cultura portuguesa (no sentido lato). Através da subjugação da política às finanças Portugal está a aniquilar a sua classe média, essência do espaço democrático, do consumo interno, da valorização do trabalho e do esforço e da solidariedade. Para o núcleo de Vítor Gaspar, Portugal é um país de ricos encapotados. Colocar todos os portugueses a trabalhar por 500 euros por mês parece ser a forma de ele recompensar a República pelos seus estudos nas instâncias internacionais. Mas se a lógica de empobrecimento forçado do país até à indigência é a política deste Governo começa a ser ainda mais perigoso o seu desprezo democrático, já demonstrado por Vítor Gaspar. E isso lembra o essencial do que sucedeu em Portugal quando as finanças colocaram no poder Salazar. Quando Sinel de Cordes, após o 28 de Maio, não conseguiu o "grande empréstimo" para salvar o país, Salazar aplicou o seu remédio.
Ele, no fundo, tinha a noção que a crise financeira estava mais ligada à crise política do que muitos julgavam. Tinha razão. Como hoje, a crise financeira era o resultado da ocupação do Estado por uma elite partidária, fosse na Monarquia, fosse na República. Para ele a mudança da estrutura política far-se-ia através de uma política de austeridade, concentrando o poder num pequeno número de homens do Governo. O ministro das Finanças passa então a ter o poder de cortar qualquer aumento da despesa. E, com isso, torna-se o centro de poder. A austeridade a prazo, como se verificou, necessitou de um Governo forte sem discussão política e um Parlamento frágil. Mais, Salazar, com a política de austeridade, não esvaziou o Estado de poder: aumentou-o, tornando-o um árbitro musculado numa economia anémica.
É o Estado que distribui as ajudas, condiciona investimentos, promove as leis, ajusta a capacidade económica dos cidadãos. Com isso, o que resta da classe política liberal acaba por desaparecer, entre funcionários do novo Estado. O Orçamento de Estado de Salazar para 1928-1929 tem lá tudo: terminar com o défice orçamental, consolidar a dívida, estabilizar o câmbio, alterar as lógicas de crédito e, lá para o fim, incentivar o fomento. A classe política liberal desaparece porque já não é necessária, substituída por técnicos salvadores, acima de tudo insensíveis a pedidos e dores alheias. O novo Estado é construído com novas prioridades. Onde a financeira determinava todas as outras. Tal como nesse tempo, a oposição às teses puramente financeiras está fragilizada. Sem argumentos sérios e ponderados. É por isso que Vítor Gaspar, centralizando cada vez mais o poder político e comunicacional no Ministério das Finanças, se pode dar ao luxo de dispensar o Parlamento, o PP e o PS. E, um dia destes, o próprio Passos Coelho."
Fernando Sobral

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