domingo, fevereiro 03, 2013

Justiça poética

"Com a ponderação isenta que o caracteriza e que o levou a dedicar anos no cargo à defesa apaixonada de um certo ex-primeiro-ministro, o ainda bastonário da Ordem dos Advogados aproveitou a abertura do ano judicial para realizar um último discurso e denunciar o "populismo" do Governo no que diz respeito à Justiça. Infelizmente, aproveitou também para ler uns versos de Ary dos Santos, aqueles que terminam com "Poeta castrado, não!", mas trocando o ofício citado pelo de Marinho Pinto: Serei tudo o que disserem/por inveja ou negação:/cabeçudo dromedário/fogueira de exibição/teorema corolário/poema de mão em mão/lãzudo publicitário/malabarista cabrão./Serei tudo o que disserem:/Advogado castrado não!"

Não é um grande poema. Se formos rigorosos, não é sequer um poema, antes uma sucessão de vocábulos avulsos típica das cantiguinhas que o saudoso Ary levava ao Festival RTP. Marinho Pinto podia ter lido o "milho-rei/milho vermelho/cravo de carne/bago de amor" da "Desfolhada" que as consequências seriam idênticas: o silêncio das luminárias presentes, que não são de embaraço fácil e ficaram embaraçadas perante a falta de tino do exercício e a infantil tentativa de irreverência.

Castrado ou não, em determinados meios do nosso querido Portugal Ary dos Santos talvez passasse por poeta, como em determinados meios próximos do Largo do Rato Marinho Pinto passará naturalmente por jurista insigne. Mas, além da dependência partidária, o péssimo gosto das respectivas figuras de topo não promete nada de bom para a Justiça caseira, bastante menos necessitada de lãzudos publicitários, agentes corporativos e líricos de quinta categoria do que de uma avassaladora reforma, de resto indissociável da reforma do Estado e, se calhar, do regime. A reforma pessoal de Marinho Pinto, que o próprio reconhece "agradar a muitos" incluindo a ele mesmo, é um princípio. Não é, nem de perto nem de longe, o fim. "

Alberto Gonçalves

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