Portugal, França & África
1.
A propósito dos recentes acontecimentos na Costa do Marfim, que envolveram de forma trágica as tropas francesas estacionadas nesse pequeno país da costa ocidental africana, e cuja presença oficialmente se destina a proteger os cidadãos franceses e outros ocidentais, para além de estabelecer uma “fronteira” entre os contendores dessa guerra-civil adormecida, relembro a atitude portuguesa perante os acontecimentos vividos na Guiné-Bissau em 1998.
Quero com isto estabelecer as diferenças de atitude entre os dois países em regiões a que os ligam laços históricos, culturais e linguísticos, e alguns interesses económicos e estratégicos, aproveitando o tradicional abandono a que a Africa foi votada pelo EUA desde sempre, e que nem no período da “guerra fria” passou a ser muito visível.
2.
Fez em Junho 6 anos que a 8 de Junho de 1998 se iniciou a rebelião militar liderada por Assumane Mané para tentar depor o presidente Nino Vieira da liderança do país.
Com o golpe de 98 Portugal foi “apanhado de calças na mão”.
Todos nos lembramos do episódio do Sagres, atracado em Bissau, para resgate de civis portugueses e guineenses, praticamente debaixo de fogo, num local e em condições muito difíceis.
Tardou a reagir, mas depois, reagiu em força.
Todos nos lembramos que apesar do golpe ter ocorrido a 8 de Junho, a 10 de Junho, frente à Expo’98 navegava engalanado em desfile militar, por ocasião das comemorações do Dia de Portugal, a Fragata NRP Vasco da Gama, a mesma que no dia seguinte zarpou para o largo da Guiné-Bissau, a que mais tarde se juntaram duas corvetas e o reabastecedor de esquadra Bérrio, para além do apoio aéreo prestado pelos C-130.
Dadas as conhecidas limitações ao nível de projecção de forças, reconhecidas no nosso CEDN, e a que se pretende dar alguma resposta através do previsto NavPol, houve que estabelecer uma base recuada em Cabo Verde, tal como em 1992, perante o reacender da guerra civil em Angola, Portugal teve que estabelecer uma base recuada em S. Tomé para apoiar o resgate de cidadãos nacionais a partir do aeroporto de Luanda.
Desde cedo adoptou uma atitude oficialmente neutral, mas notou-se uma certa simpatia pela causa dos militares liderados na altura por Assumane Mané.
Lembremo-nos que após semanas encerrado, o aeroporto de Bissalanca abriu para um C-130 português, que dizem as más línguas, transportava algumas armas e um telefone-satélite que o MNE de então, Jaime Gama terá oferecido a Mané.
Também todos nos recordamos do encontro na mata entre Jaime Gama e Mané, em que Gama se deslocou num helicóptero Linx da marinha, saído da fragata destacada.
E finalmente do acordo de cessar-fogo a bordo da fragata NRP Corte Real, que entretanto rendera a Vasco da Gama.
A situação podre manteve-se, e foi óbvio para todos que Portugal viu com desconfiança a crescente influência francesa por detrás das tropas senegalesas e de Conakri para supostamente defenderem o poder de Nino Vieira, que se começara a "encostar" a estas influências francófonas.
Em 99, com aquela revolta repentina da população, claramente enquadrada pelos militares, e com o incêndio e saque do Centro Cultural Francês em Bissau, com a rápida fuga de Nino para a embaixada portuguesa, viu-se nisso uma clara manipulação dos acontecimentos por Portugal.
Pela primeira vez desde a descolonização, viu-se um Portugal activo na defesa de interesses em territórios a que nos ligam laços históricos, culturais, geo-estratégicos e económicos.
A força portuguesa constituída por 1 fragata, 2 corvetas e um reabastecedor, para além de 2 C-130 que se basearam em Cabo Verde demonstrou essa vontade de influenciar os acontecimentos e a vitória final dos homens de Mané foi uma vitória geo-estratégica de Portugal sobre as forças e influências francófonas.
3.
Tudo isto para estabelecer uma diferença de atitudes:
Portugal e França actuam de maneira completamente distinta no cenário africano pós-colonial:
Primeiro, porque Portugal não tem os meios humanos, materiais e económicos que lhe permitam manter uma intervenção mais activa e permanente nas suas antigas colónias.
Mas também a Inglaterra, outro país com tradições coloniais em África não adopta uma atitude pró-activa em África, de modo a comparar-se com a atitude francesa, preferindo adoptar uma atitude muito mais discreta, mesmo em situações de violação desses mesmos interesse, como se verificou há 4 anos no Zimbabwe.
Por outro lado, porque é imprudente a qualquer país europeu tentar influir os acontecimentos de forma tão “viril” como o fazem os franceses.
A diplomacia de bastidores, os “magistérios de influência” e alguma credibilidade é o melhor caminho para se conseguirem tirar vantagens de uma boa relação entre os estados europeus e africanos.
Está demonstrado que atitudes como a francesa está errada, e acaba sempre por se revelar perniciosa para a sua presença.
Finalmente, ainda que os interesses do estado europeu tendam piara um dos lados da contenda, essa atitude não pode ser descaradamente assumida, como parece ser o caso, ao vermos a França colocar-se objectivamente do lado dos rebeldes marfinenses, contra o Governo.
Se a Portugal neste domínio não lhe falta a sabedoria e a prática de longos séculos de colonização e expansão, faltam-lhe os meios materiais para em algum momento poder responder à chamada de um país amigo.
Daí a necessidade de Portugal procurar, só, ou no seio da CPLP estabelecer uma presença mais efectiva do ponto de vista político e diplomático, e que possa colocar o mundo lusófono a ter uma voz no Atlântico Sul, o que só lhe trará vantagens no teatro da União Europeia.
8 Comments:
A França tem mandato da ONU para a sua intervenção na Costa do Marfim?
Mompox
caro MOMPOX:
Julgo que não, embora não o possa assegurar.
A presença francesa nesse país resulta de uma guerra civil iniciada há 3 anos, tendo as tropas de Paris aí estacionadas a missão oficial de separar os dois contendores, e também a de proteger os seus cidaddãos e outros cidadãos de países ocidentais aí residentes, nomeadamente portugueses.
Mas dadas as tradicionais ligações de França à politica interna das suas antigas colónias, essa presença serve também para que a França não perca o pé na Costa do Marfim.
Daí esta atitude do Governo de Abidjan, já que julgou que os franceses estavam a apoiar objectivamente os rebeldes no norte do terrritório.
A situação é confusa, mas como sabe, tanto na Serra Leoa, onde a Inglaterra interveio, como na Libéria, onde os EUA também intervieram, na Guiné-Bissau, onde portugal esteve presente, e agora na Costa do Marfim, com a França, é tradicional que as antigas colónias procedam à protecção dos seus nacionais nas respectivas ex-colónias.
Onde parece haver uma espécie de mandato da ONU é no Haiti, onde americanos, franceses e brasileiros, para além de outros paísses têm aí destacadas forças para evitar que o país siga o mesmo caminho caótico da Somália.
Caro Mulah,
Parece-me no mínimo estranho que a ausencia de mandato da ONU seja substituída por uma espécie de legitimidade pós-colonial, um 'quase-costume' histórico, ainda por cima por parte de um país que recentemente se mostrava tão intransigente no tocante à falta de mandato da ONU para um outro intervencionismo noutra área do planeta. Parece que para a França, o mandato só é importante quando os protagonismos são des autres.
Mompox
Caro MOMPOX:
Realmente é estranho, mas como terá lido não é só a França que intervem.
No caso da Costa do Marfim, as suas tropas foram para lá ao abrigo do que está acordado ao nível da União Europeia, e essas tropas destinam-se unicamente a proteger os seus nacionais, e demais nacionais de países da UE e a resgatá-los quando for caso disso.
Não se trata de invasão ou de ocupação de um país.
Agora também reconheço que a França tem um intervencionismo muito grande em certos países africanos, e agora essa tradição está-se a virar contra a própria França.
Mas os casos da Costa do Marfim e do Iraque são muito deferentes, dado que no país africano não se tratou de invasão e deposição de um regime.
Os EUA também desembarcaram recentemente tropas na Libéria, e não foram condenados por isso.
Caro Mompox,
Claro, com certeza que os casos são diferentes...até certo ponto.
Apesar das tropas francesas se baterem contra as tropas governamentais da Costa do Marfim, não se ouvem vozes de denúncia pela ausência de mandato, tão sonoras e tenazes que foram noutros carnavais. O que de tão estranho até parece suspeito. É este o meu ponto.
Uma correcção:
Após alguma investigação, as tropas de Paris, e em menor número de outros países estão na Costa do Marfim ao abrigo da Resolução 1582 do CS das Nações Unidas, na sequência dos acordos de Paris de 2002, em que se estabeleceu a necessidade de uma "força de imposição" (e não de manutenção) de paz.
A atitude das tropas fieis ao governo desse país africano foi estranha, mas isso pode ser reflexo da incomodidade que o tradicional intervencionismo francês tem tido em certos países africanos.
Ah, assim já se percebe. Obrigado.
Mompox
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