Quer factura?
"O combate à evasão fiscal parece estar a tornar-se um assunto sério, e o facto de algumas acções importantes serem anunciadas em época de entrega de declarações de IRS faz com certeza parte da ordem de batalha. É quase garantido que este grande esforço vai fazer entrar nos cofres públicos centenas de milhões de euros que, sem ele, teriam provavelmente destino menos ético e menos cívico. (Outros dirão que essas centenas de milhões de euros vão ser desviadas do “investimento produtivo” para alimentarem “o gordo, insaciável e ineficiente Estado que temos”...). Mas é também seguro que a luta não passará da superfície, alcançará resultados relativamente modestos e, sobretudo, passará ao lado dos grandes incumpridores – que são os protegidos pela própria lei fiscal.
Mas há mais. O que se passa com as “facturas” é tão rotineiro que ninguém liga. A própria pergunta (igualmente rotineira) “quer factura?” diz tudo. O que deveria ser invariavelmente praticado – a entrega de documento comprovativo de qualquer transacção – acaba por ser um gesto feito a pedido. A esmagadora maioria das compras não é documentada. Ou, então, é documentada por sucedâneos (como a famosa “consulta de mesa” dos restaurantes) que permitem conferir mas não comprovar. E percebe-se por quê: o vendedor não tem interesse em fornecer a “factura” (ou recibo?) – que o expõe ao fisco – e o cliente também não tem qualquer vantagem em a receber. Pelo contrário: é mais um papelinho que irá juntar-se a outros na algibeira, e que será preciso deitar fora no primeiro caixote.
Quando se vê alguém na caixa de um supermercado, com um enorme carro de compras, a pedir “factura” com “número de contribuinte”, é natural que o cliente seguinte na fila desconfie: está ali alguém que, provavelmente, projecta deduzir a despesa das compras da casa numa qualquer matéria colectável, porventura a título de “despesas de exploração” de um estabelecimento comercial. Há aí um interesse claro e concreto: a “factura” é pedida com todos os detalhes.
Quem tenha a consciência clara do ponto a que chegou na sociedade portuguesa a “cultura de incumprimento” – fenómeno erosivo que ataca por dentro a tão proclamada “cidadania” – aceitará decerto (com alguma pena) que só é possível fazer reentrar no domínio do visível uma grande parte da economia se se praticar uma política realista de incentivos à cooperação cívica. Não há, neste quadro, outra maneira de melhorar as coisas: é preciso tentar realizar os valores utilizando a dinâmica dos interesses.
Em alguns países, a entrega de recibo da venda é um gesto cujo automatismo decorre de uma cultura instalada. O hábito é induzido, certamente, pela ameaça consistente de sanções a sério. Mas pode ser facilitado, ou até mesmo decisivamente determinado, pela expectativa de vantagens por parte dos consumidores de bens e serviços. Há aqui um largo e até divertido espaço para a invenção. Nuns casos, as “facturas” podem ser convertidas em fornecimento de géneros a instituições de solidariedade social. Noutros, uma certa percentagem (mínima, claro) do montante dos comprovativos coleccionados é dedutível na matéria colectável em imposto sobre o rendimento. Noutros, ainda, os valores documentados são transformáveis em bilhetes para o sorteio de automóveis, casas e outros bens.
Não raro, estes sistemas são criados por empresas que visam benefícios próprios, como é o caso das gestoras de grandes espaços comerciais, que recebem uma percentagem das vendas realizadas nos vários estabelecimentos. Noutras situações, trata-se de iniciativas públicas directamente orientadas para o combate à evasão fiscal e à economia paralela, nos sectores em que ambas florescem.
De um modo ou de outro, trata-se de restituir clareza e verdade à economia e, através dela, à relação entre contribuintes e Estado. E, por aí, talvez algum dia nos aproximemos de algo semelhante a um esboço de justiça fiscal."
António Monteiro Fernandes
Mas há mais. O que se passa com as “facturas” é tão rotineiro que ninguém liga. A própria pergunta (igualmente rotineira) “quer factura?” diz tudo. O que deveria ser invariavelmente praticado – a entrega de documento comprovativo de qualquer transacção – acaba por ser um gesto feito a pedido. A esmagadora maioria das compras não é documentada. Ou, então, é documentada por sucedâneos (como a famosa “consulta de mesa” dos restaurantes) que permitem conferir mas não comprovar. E percebe-se por quê: o vendedor não tem interesse em fornecer a “factura” (ou recibo?) – que o expõe ao fisco – e o cliente também não tem qualquer vantagem em a receber. Pelo contrário: é mais um papelinho que irá juntar-se a outros na algibeira, e que será preciso deitar fora no primeiro caixote.
Quando se vê alguém na caixa de um supermercado, com um enorme carro de compras, a pedir “factura” com “número de contribuinte”, é natural que o cliente seguinte na fila desconfie: está ali alguém que, provavelmente, projecta deduzir a despesa das compras da casa numa qualquer matéria colectável, porventura a título de “despesas de exploração” de um estabelecimento comercial. Há aí um interesse claro e concreto: a “factura” é pedida com todos os detalhes.
Quem tenha a consciência clara do ponto a que chegou na sociedade portuguesa a “cultura de incumprimento” – fenómeno erosivo que ataca por dentro a tão proclamada “cidadania” – aceitará decerto (com alguma pena) que só é possível fazer reentrar no domínio do visível uma grande parte da economia se se praticar uma política realista de incentivos à cooperação cívica. Não há, neste quadro, outra maneira de melhorar as coisas: é preciso tentar realizar os valores utilizando a dinâmica dos interesses.
Em alguns países, a entrega de recibo da venda é um gesto cujo automatismo decorre de uma cultura instalada. O hábito é induzido, certamente, pela ameaça consistente de sanções a sério. Mas pode ser facilitado, ou até mesmo decisivamente determinado, pela expectativa de vantagens por parte dos consumidores de bens e serviços. Há aqui um largo e até divertido espaço para a invenção. Nuns casos, as “facturas” podem ser convertidas em fornecimento de géneros a instituições de solidariedade social. Noutros, uma certa percentagem (mínima, claro) do montante dos comprovativos coleccionados é dedutível na matéria colectável em imposto sobre o rendimento. Noutros, ainda, os valores documentados são transformáveis em bilhetes para o sorteio de automóveis, casas e outros bens.
Não raro, estes sistemas são criados por empresas que visam benefícios próprios, como é o caso das gestoras de grandes espaços comerciais, que recebem uma percentagem das vendas realizadas nos vários estabelecimentos. Noutras situações, trata-se de iniciativas públicas directamente orientadas para o combate à evasão fiscal e à economia paralela, nos sectores em que ambas florescem.
De um modo ou de outro, trata-se de restituir clareza e verdade à economia e, através dela, à relação entre contribuintes e Estado. E, por aí, talvez algum dia nos aproximemos de algo semelhante a um esboço de justiça fiscal."
António Monteiro Fernandes
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