terça-feira, dezembro 26, 2006

As medidas do carisma.

"Sócrates, que hoje pertence à ordem do sobrenatural, era há quatro anos um logótipo da ‘tralha guterrista’. As referências diárias à falta de ‘carisma’ do chefe do PSD não se esgotam nas abalizadas sentenças da concorrência interna, como o dr. Menezes e o dr. Sarmento: a falta de ‘carisma’ do dr. Marques Mendes é um consenso transversal, para usar uma irritante expressão em voga.

Muito bem, com dois senãos. Em primeiro lugar, o desejado ‘carisma’ é um requisito caro a sociedades primitivas, a dinâmicas revolucionárias e, desculpem a redundância, a regimes totalitários. Os teóricos mostraram amplamente a crença irracional que o conceito implica, menos apropriada à administração do Estado que a cultos religiosos.

Depois, mesmo que desprezemos a teoria, desancar em Marques Mendes é um desporto que exige certa dose de amnésia. Em democracias ‘normais’, a ausência de ‘carisma’ vem com o cargo de líder da Oposição, e ofereço um bilhete para o eventual almoço de apoio a António Borges a quem provar que nas últimas duas décadas sucedeu o contrário. Constâncio e Sampaio não tinham ‘carisma’ nenhum. Guterres e Durão, idem. E Sócrates, que hoje pertence à ordem do sobrenatural, era há quatro anos um logótipo da ‘tralha guterrista’.

O problema é outro. Invocar a falta de ‘carisma’ de Marques Mendes ou é uma forma discreta de classificar a sua figura, na curiosa presunção de que um metro e sessenta não habilitam ninguém a ocupar São Bento, ou, o que é mais sério, um modo cínico de reconfirmar a sua real impotência.

Mais do que de centímetros, Marques Mendes carece da máquina de propaganda governamental, habitualmente desagradável para a Oposição e no caso presente esmagadora. Embora não pareça, o eng. Sócrates e os seus ministros estão em toda a parte, através de promessas, planos, medidas, propostas, arremedos de reformas, que custa acompanhar, compreender ou desmontar. O bombardeamento ‘informativo’ em que o Governo se especializou torna difícil distinguir entre os anúncios e a prática, entre as consequências previstas e as consequências sentidas das supostas acções, entre o que é realizado e o que apenas consta estar em curso. Por enquanto, o nevoeiro chega para calar as dissidências e embriagar o cidadão comum, que se julga apanhado em plena sanha reformista e quase não sente dor, ou sente as dores naturais da crise, encaradas como um preço justo a pagar pela redenção da pátria às mãos de Sócrates.

Sucede que, para já, Sócrates fez pouco ou nada, fora a abundante divulgação da ‘prosperidade’ e, com tocante eficácia, o silenciamento dos factos aborrecidos. Talvez venha a fazer, não sei. Sei que, um dia, o barulho vigente e a censura diplomática não bastarão para fintar a realidade. Nesse dia, cuja data não arrisco, o Governo terá de enfrentar o cidadão comum, frustrado ante a perpetuação de uma crise que nunca se tentou resolver ou que (admitamos) foi combatida mediante inomináveis sacrifícios. É então que o País será apresentado ao verdadeiro Sócrates. E que o repentino ‘carisma’ de Marques Mendes, se ele resistir até lá, o elevará às alturas. Ou ao metro e oitenta
."

Alberto Gonçalves

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