sexta-feira, janeiro 12, 2007

Declaração de abstenção

"Na semana passada, um funcionário do Bloco de Esquerda censurou o apoio de Rui Rio à despenalização do aborto, sob o pretexto de que o autarca queria aproveitar-se de causa alheia. Ainda que, anteontem, o funcionário do BE e o dr. Rio tenham surgido juntos num evento em prol do ‘sim’, ficou apurado que o fadinho das mulheres humilhadas e dos vãos de escada é música de fundo para o interesse partidário, afinal o verdadeiro fundamento do referendo.

Na Extrema-esquerda, o interesse partidário obriga a manter acesas as chamas da ‘subversão’ e da ‘luta’. Isto é, há que zelar pela imagem e preservar um certo estilo, incompatível com o ‘reaccionarismo’ do dr. Rio, mas que combina na perfeição com a campanha em prol do aborto, que o BE gostaria de tornar exclusivo seu. Goste--se ou não, é consensual que a defesa da ‘interrupção voluntária’ da gravidez (um eufemismo: a gravidez não pode ser retomada mais tarde) possui um travo a ruptura progressista. Os opositores do aborto, aliás, já perceberam a sua desvantagem publicitária e respondem com o argumento de que votar ‘não’ é que é “moderno” (sic).

Para azar deles, aparentemente não é. Aparentemente, “moderno” hoje é dizer ‘sim’ ao aborto, como ‘modernas’ são todas as posições que, pelos melhores ou piores motivos, pregam a abertura face a temas como as drogas, a eutanásia e os genéricos direitos das minorias, nos países ocidentais, e que aceitam uma medieval intolerância perante os mesmos temas desde que praticada por nações e comunidades exóticas. A ‘modernidade’ social, portanto, vem em pacote, e à superfície coincide com o direito do indivíduo à livre escolha (ou, no que toca aos povos exóticos, com o exacto inverso).

Assim, não espanta que o aborto seja tratado enquanto matéria opcional. No caso, a opção da mulher grávida. O problema é que não devia: na prática, consiste em provocar o fim de uma vida, ou, para evitar polémicas, de uma espécie de vida, a qual, às cinco, dez ou 30 semanas, não é tida nem achada no processo. Como certas formas de eutanásia, e ao contrário do consumo de drogas, por exemplo, abortar implica decidir por outrem, e decidir a própria existência de outrem. Passe a propaganda do BE e afins, é só essa decisão que cada sujeito, e, em consequência, a sociedade vão facilitar, ou não, no referendo de Fevereiro.

Admitir estas banalidades, porém, não chega para transformar ninguém num militante antiaborto. O respeito pela vida humana, em qualquer fase do desenvolvimento, que os movimentos pelo ‘não’ reclamam, é, à primeira vista, razoável. À segunda, é um exagero. Eles vêem no feto uma futura, e graciosa, criança.

Eu, nos momentos de pessimismo, vejo um dirigente desportivo, um fanático de ‘causas’ ou um imbecil equivalente ao meu vizinho. Está bem: não me agrada que uma senhora recorra a um hospital e, a expensas públicas, se livre de um filho saudável com a leveza com que se livraria de um quisto. Mas há quistos muito menos desagradáveis do que o meu vizinho
."

Alberto Gonçalves

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