Cães de palha
O sistema08.04.2007, António Barreto
Retrato da Semana
Com estes hábitos, este estilo e esta prática de favoritismo, a tão proclamada reforma do Estado não está em boas mãosS ão às dezenas. Às centenas. Aos bandos. Assessores, conselheiros, consultores, especialistas, tarefeiros e avençados. São novos, têm licenciaturas, mestrados e MBA, talvez até doutoramentos. Sabem tudo de imagem e apresentação. Vestem fato escuro de marca, mas alguns, mais blasés, deixaram de usar gravata. São os gestores de produto. O produto, no caso, é imagem e informação. Informação do Governo para o exterior e a informação sobre os cidadãos e a sociedade. Apesar da idade, já tiveram múltiplas experiências nos jornais, nas televisões, nas agências de informação e nas empresas de imagem. O sistema vive em grande parte destes profissionais reciclados. Estudam o inimigo e fazem dossiers. Elaboram estratégias de apresentação ao público de medidas.
Organizam a informação do Governo, controlam os actos dos ministros e dos secretários de Estado, centralizam os contactos com a imprensa. Telefonam, enviam SMS, escrevem mails, convidam para um copo e deixam cair umas frases. Conhecem intimamente os jornalistas a que dão recados. Sabem quais são os jornais que se prestam. Têm mapas e organigramas. Seleccionam frases assassinas, escolhem os locais para as oportunidades fotográficas, ocupam-se da vestimenta dos governantes e designam os que serão privilegiados com a informação criteriosamente racionada. São especialistas em apanhar de surpresa as oposições, sobretudo quando estas são incompetentes. Alimentam os jornalistas que se portam bem e seguem as regras do seu jogo. Gabam-se de fazer a agenda política do país e da imprensa. Têm orgulho na centralização dos serviços de informação, para que contribuíram, assim como no controlo da informação do Governo, que exercem.
Trabalham na espuma e no efémero. Organizam o passageiro. Prezam as aparências. Provocam impressões e sensações. Obtém resultados imediatos e passam à frente. Para a guerrilha, para os raides e para as operações especiais, são excelentes. Os socialistas, especialmente os da subespécie dos pragmáticos, perdem-se de amores por esta gente e por este sistema.
O PROBLEMA É QUE, NA POLÍTICA E NA VIDA PÚBLICA, nem tudo se resume à agenda. Há vida para além dos governos e dos gestores de imagem. Há cidadãos, instituições, empresas, associações, partidos políticos e autores de blogues. Há memória, concorrência e luta de classes. Há ressentimento neste mercado imperfeito de imagem e agenda. Existe alguma imprensa que não segue o calendário do Governo. Também há jornalistas que não se conformam com a posição de veículos de recados. E há sobretudo o funcionamento normal da sociedade e das instituições que não se compadece com este universo artificial e manipulado.
A VERDADE É QUE ESTE SISTEMA FORJADO E TREINADO para a encenação mostra as suas debilidades à primeira oportunidade. Como se tem visto. A balbúrdia da Universidade Independente deu sinais de desorientação. A questão dos diplomas académicos do primeiro-ministro revelou imperícia e fragilidades a que o sistema não souber acudir ou responder. Toda a discussão sobre a Ota esteve e está envenenada por operações de manipulação e ocultação. O encerramento de unidades de saúde tem vindo a ser particularmente afectado por este sistema. Os gastos dos gabinetes dos governantes denunciados pelo Tribunal de Contas deram origem a reacções inoportunas e desajeitadas.
ESTE ÚLTIMO CASO É MUITO SIGNIFICATIVO. O Tribunal de Contas nunca foi muito apreciado pelos governos, nem pelas autarquias. Foi este tribunal que abriu os dossiers muito difíceis dos bairros sociais, dos concursos públicos, dos subsídios ao futebol profissional, dos desperdícios no sistema de saúde e de educação, dos gastos anormais dos gabinetes dos ministros e de tantos outros. Na nossa história recente, já houve leis aprovadas no Parlamento para legalizar as irregularidades de entidades oficias, cujos comportamentos tinham sido condenados pelo Tribunal de Contas. Trata-se de uma das poucas entidades independentes de toda a nossa vida pública. A sua condenação do Governo deixa este em má posição: ou quer esconder os factos, ou deu má informação ao tribunal. Veremos como este reage agora, depois de ter anunciado que iria rever as contas. O que está em causa é de excepcional importância: a seriedade e a independência de uma das poucas instituições que contribuem seriamente para a democracia e o Estado de direito.
O PROBLEMA É PREOCUPANTE, pois as saídas não são muito agradáveis. Primeira: o Tribunal de Contas agiu com malícia. Pelos antecedentes, não acredito. Pela personalidade do seu presidente, Oliveira Martins, também não. Se fosse verdade, mal iria a vida política. Segunda: o tribunal enganou-se. É sempre possível, mas, pela rigorosa tradição de centenas de relatórios e de sentenças, custa a crer. A ser acertado, a confiança futura neste tribunal fica abalada. Terceira: os gabinetes dos ministros, especialmente o do primeiro-ministro, erraram. É possível, mas absurdo. Quarta: o Governo tenta ocultar os factos. Também é possível.
DE QUALQUER MODO, SEJA QUAL FOR A CONCLUSÃO, duas certezas ficam connosco. Uma: há despesas a mais nos gabinetes, mesmo as que servem para transferências para outros ministérios. Há dinheiro a mais para improvisos e expedientes, mesmo se legais. Duas: há gente a mais nos gabinetes dos ministros. Há multidão no gabinete do primeiro-ministro. Cinquenta, cem ou cento e cinquenta são números diferentes e de gravidade diversa. Mas é sempre gente a mais. Estes factos revelam simplesmente um estilo de governo clientelar e subdesenvolvido. Apesar de os altos funcionários da administração pública serem já todos, por lei, da confiança política do Governo, os ministros rodeiam-se de amigos ainda mais de confiança nos seus gabinetes. Com estes hábitos, com este estilo, com esta obsessão pela informação e com esta prática de favoritismo, a tão proclamada reforma do Estado não está em boas mãos.
Este excelente artigo é de grande interesse.
Mostra como funciona actualmente este estado. Funciona a todos os níveis de poder, desde o governo à mais pequena autarquia, sem excepções de cor política.A morte dos ideais, da ética e da moral são a causa.Afinal é também a morte da alma.
Se Nietzsche continua a poder chocar, é por ter mostrado que algumas das virtudes que mais admiramos são sublimações de motivos - como a crueldade e o ressentimento - que condenamos com o maior vigor.
Maquiavel nunca foi tão lido, porque todos querem ser princípes e porque para se manter o poder é preciso coragem e talento, para a dissimulação.
John Gray explica algumas destas questões em " Strow dogs" .Os cães de palha são de facto muitos.
Fiquem apenas atentos e observem, aprendam a observar os hábitos dos outros animais e perceberão que eles também têm alma como os humanos.
Retrato da Semana
Com estes hábitos, este estilo e esta prática de favoritismo, a tão proclamada reforma do Estado não está em boas mãosS ão às dezenas. Às centenas. Aos bandos. Assessores, conselheiros, consultores, especialistas, tarefeiros e avençados. São novos, têm licenciaturas, mestrados e MBA, talvez até doutoramentos. Sabem tudo de imagem e apresentação. Vestem fato escuro de marca, mas alguns, mais blasés, deixaram de usar gravata. São os gestores de produto. O produto, no caso, é imagem e informação. Informação do Governo para o exterior e a informação sobre os cidadãos e a sociedade. Apesar da idade, já tiveram múltiplas experiências nos jornais, nas televisões, nas agências de informação e nas empresas de imagem. O sistema vive em grande parte destes profissionais reciclados. Estudam o inimigo e fazem dossiers. Elaboram estratégias de apresentação ao público de medidas.
Organizam a informação do Governo, controlam os actos dos ministros e dos secretários de Estado, centralizam os contactos com a imprensa. Telefonam, enviam SMS, escrevem mails, convidam para um copo e deixam cair umas frases. Conhecem intimamente os jornalistas a que dão recados. Sabem quais são os jornais que se prestam. Têm mapas e organigramas. Seleccionam frases assassinas, escolhem os locais para as oportunidades fotográficas, ocupam-se da vestimenta dos governantes e designam os que serão privilegiados com a informação criteriosamente racionada. São especialistas em apanhar de surpresa as oposições, sobretudo quando estas são incompetentes. Alimentam os jornalistas que se portam bem e seguem as regras do seu jogo. Gabam-se de fazer a agenda política do país e da imprensa. Têm orgulho na centralização dos serviços de informação, para que contribuíram, assim como no controlo da informação do Governo, que exercem.
Trabalham na espuma e no efémero. Organizam o passageiro. Prezam as aparências. Provocam impressões e sensações. Obtém resultados imediatos e passam à frente. Para a guerrilha, para os raides e para as operações especiais, são excelentes. Os socialistas, especialmente os da subespécie dos pragmáticos, perdem-se de amores por esta gente e por este sistema.
O PROBLEMA É QUE, NA POLÍTICA E NA VIDA PÚBLICA, nem tudo se resume à agenda. Há vida para além dos governos e dos gestores de imagem. Há cidadãos, instituições, empresas, associações, partidos políticos e autores de blogues. Há memória, concorrência e luta de classes. Há ressentimento neste mercado imperfeito de imagem e agenda. Existe alguma imprensa que não segue o calendário do Governo. Também há jornalistas que não se conformam com a posição de veículos de recados. E há sobretudo o funcionamento normal da sociedade e das instituições que não se compadece com este universo artificial e manipulado.
A VERDADE É QUE ESTE SISTEMA FORJADO E TREINADO para a encenação mostra as suas debilidades à primeira oportunidade. Como se tem visto. A balbúrdia da Universidade Independente deu sinais de desorientação. A questão dos diplomas académicos do primeiro-ministro revelou imperícia e fragilidades a que o sistema não souber acudir ou responder. Toda a discussão sobre a Ota esteve e está envenenada por operações de manipulação e ocultação. O encerramento de unidades de saúde tem vindo a ser particularmente afectado por este sistema. Os gastos dos gabinetes dos governantes denunciados pelo Tribunal de Contas deram origem a reacções inoportunas e desajeitadas.
ESTE ÚLTIMO CASO É MUITO SIGNIFICATIVO. O Tribunal de Contas nunca foi muito apreciado pelos governos, nem pelas autarquias. Foi este tribunal que abriu os dossiers muito difíceis dos bairros sociais, dos concursos públicos, dos subsídios ao futebol profissional, dos desperdícios no sistema de saúde e de educação, dos gastos anormais dos gabinetes dos ministros e de tantos outros. Na nossa história recente, já houve leis aprovadas no Parlamento para legalizar as irregularidades de entidades oficias, cujos comportamentos tinham sido condenados pelo Tribunal de Contas. Trata-se de uma das poucas entidades independentes de toda a nossa vida pública. A sua condenação do Governo deixa este em má posição: ou quer esconder os factos, ou deu má informação ao tribunal. Veremos como este reage agora, depois de ter anunciado que iria rever as contas. O que está em causa é de excepcional importância: a seriedade e a independência de uma das poucas instituições que contribuem seriamente para a democracia e o Estado de direito.
O PROBLEMA É PREOCUPANTE, pois as saídas não são muito agradáveis. Primeira: o Tribunal de Contas agiu com malícia. Pelos antecedentes, não acredito. Pela personalidade do seu presidente, Oliveira Martins, também não. Se fosse verdade, mal iria a vida política. Segunda: o tribunal enganou-se. É sempre possível, mas, pela rigorosa tradição de centenas de relatórios e de sentenças, custa a crer. A ser acertado, a confiança futura neste tribunal fica abalada. Terceira: os gabinetes dos ministros, especialmente o do primeiro-ministro, erraram. É possível, mas absurdo. Quarta: o Governo tenta ocultar os factos. Também é possível.
DE QUALQUER MODO, SEJA QUAL FOR A CONCLUSÃO, duas certezas ficam connosco. Uma: há despesas a mais nos gabinetes, mesmo as que servem para transferências para outros ministérios. Há dinheiro a mais para improvisos e expedientes, mesmo se legais. Duas: há gente a mais nos gabinetes dos ministros. Há multidão no gabinete do primeiro-ministro. Cinquenta, cem ou cento e cinquenta são números diferentes e de gravidade diversa. Mas é sempre gente a mais. Estes factos revelam simplesmente um estilo de governo clientelar e subdesenvolvido. Apesar de os altos funcionários da administração pública serem já todos, por lei, da confiança política do Governo, os ministros rodeiam-se de amigos ainda mais de confiança nos seus gabinetes. Com estes hábitos, com este estilo, com esta obsessão pela informação e com esta prática de favoritismo, a tão proclamada reforma do Estado não está em boas mãos.
Este excelente artigo é de grande interesse.
Mostra como funciona actualmente este estado. Funciona a todos os níveis de poder, desde o governo à mais pequena autarquia, sem excepções de cor política.A morte dos ideais, da ética e da moral são a causa.Afinal é também a morte da alma.
Se Nietzsche continua a poder chocar, é por ter mostrado que algumas das virtudes que mais admiramos são sublimações de motivos - como a crueldade e o ressentimento - que condenamos com o maior vigor.
Maquiavel nunca foi tão lido, porque todos querem ser princípes e porque para se manter o poder é preciso coragem e talento, para a dissimulação.
John Gray explica algumas destas questões em " Strow dogs" .Os cães de palha são de facto muitos.
Fiquem apenas atentos e observem, aprendam a observar os hábitos dos outros animais e perceberão que eles também têm alma como os humanos.
4 Comments:
ó toupeira, que texto magnífico ! Aplaudo. E MUITO !
Na minha humilde opinião, este não é o retrato do actual governo, da actual política, mas bem mais do que isso.
É o fiel retrato da nossa Democracia. Inaugurada em 25 de Abril de 1974.
A perversão do sistema democrático pela classe dominante - a do Poder !
Nota - Quanto às questões de imagem, relações públicas (e até sondagens), na política, os EUA "sempre" foram uma boa escola !:-)
abraço
Este é um excerto de um texto escrito pela famosa e "tenebrosa" figura da Blogosfera, o Arrebenta (há quem diga que pertence à "Orquestra Vermelha", ... não sei ...:-)))).
Mas ......convenhamos, que este "prosador" toca na ferida, aliás ... toca em muitas feridas ...
Ora leiam, a prosa de "arrebenta", de forma atenta, se possível:
"Na realidade, o Sistema já não tem solução interna; ele divide-se nas seguintes camadas:
1) Os que dele vivem, e o são, assumidamente;
2) Os que dele vivem, e o são, na sombra;
3) Os "comentadores" de serviço, que lhe precisam as infindáveis minúcias, para que ele, Sistema, possa continuar a sobreviver, os Marcelos, o Búfalo da Coca, a Constraça Cunha e Nhanha, o Bettencout Resendes, o Vitorino, a "Quadratura das Bestas", etc.;
4) As "Mulheres-Alibi": os que, de dentro dele, e os mais perigosos, porque mais dotados de, enfim, imaginação, fingem estar "contra": chama(ra)m-se Hermanns, Vascos Pulidos Valentes, e são "Eixos do Mal", e são "Gatos Fedorentos", que, por alto, assim me lembre.
Eles são uma "Produção Fictícia".
O seu alimento é o salário do Sistema, e os seus estragos incomensuráveis, porque ocupam o lugar que seria devido à verdadeira crítica; as consequências dos seus actos e intervenções, a pantanal manutenção da "Coisa".
Ora, isto tem de levar tudo um valente pontapé."
Na mouche !!!!
Agora eu, com os meus "Pézinhos n'Areia", pergunto à TOUPEIRA:
- Como é que se dá um valente pontapé no ".." a esta "gente", de quem fala Arrebenta ?
Nota - Já vimos que, pelo voto não se resolve..., porque é o voto, que OS mantém no Sistema....:-(
A.B.,a quem chamam "O Cronista Picareta", é um despeitado militante. Está assim porque em tempos lhe tiraram os tachos e o protagonismo. Não faz bem à meninge dixar-se alguem levar nas encurradas laudatórias de um verdadeiro despeitado político.E pronto!
Embora as "toupeiras" frequentem locais obscuros, não havia necessidade de ir ao limbo recolher as mensagem apocalípticas desse ceptico-cínico Barreto. Dos locais conhecidos que o tipo frequenta fugimos. Do Carvalhadas não apetece nada...
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