sexta-feira, julho 20, 2007

Os óculos dos políticos.

"Dúvidas houvesse e as eleições intercalares para a Câmara de Lisboa teriam vindo desfazê-las - em regra, o que interessa verdadeiramente aos políticos é a conquista do poder e a sua conservação. Não é a coisa pública, não são os cidadãos, não é a qualidade da democracia. Ou então, o que acontece é que eles usam uns óculos especiais, através dos quais vêem uma realidade diferente da que nós avistamos. Porque o facto mais significativo do acto eleitoral na capital portuguesa, domingo passado, foi a alta taxa de abstenção - dos 537 456 eleitores inscritos não votaram 62,61%, qualquer coisa como 336 500 cidadãos; a estes juntaram-se ainda mais cerca de 12 500, que votaram em branco.

E quando se esperava que os responsáveis partidários e mesmo os candidatos manifestassem a sua preocupação com o desinteresse dos lisboetas e anunciassem uma profunda reflexão em torno da sua responsabilidade nesse desinteresse, eis que uns celebram a vitória e outros reflectem sobre a melhor forma de dar a volta à derrota.

Claro que o fenómeno da abstenção foi referido, mas apenas de passagem e para logo ser justificado com a circunstância de se tratar de um domingo, num mês de férias, etc. e tal… Ninguém se lembrou de falar na pobreza de ideias que caracterizou a campanha ou no facto de haver, desde a primeira hora, um vencedor antecipado, produzido por sucessivas sondagens. E, sobretudo, de reparar na falta de confiança que crescentemente os cidadãos têm nos políticos e que se traduz na convicção de que não vale a pena ir votar porque, ganhe quem ganhar, fica tudo na mesma.

Nada de novo. Os políticos não gostam da abstenção porque ela mina a sua representatividade e retira-lhes legitimidade. Mas nem por isso estão preparados para assumir a sua responsabilidade no processo e rever as suas práticas. É mais fácil atribuir a abstenção unicamente ao incumprimento do dever de votar por parte dos eleitores. Mesmo que seja este, e é, um argumento falacioso. Em democracia, a abstenção tem de ser vista também como um direito; como uma forma ao alcance dos cidadãos para afirmarem que não se revêem nas propostas apresentadas, que não confiam nos partidos ou nos candidatos.

Em geral, no campo político, prefere ignorar-se este ponto de vista. Porque se assim não fosse, cairiam por terra as retumbantes vitórias e a possibilidade de as celebrar, como ainda no passado domingo aconteceu. António Costa ganhou, é verdade. Mas votaram nele apenas 57 907 lisboetas, pouco mais de 10% dos eleitores inscritos; não mais de 14%, se tivermos em conta os eleitores "fantasma", que ainda constam das listas.

Não obstante, isso não impediu o secretário-geral do PS de realçar a "grande vitória" que o candidato do seu partido acabava de obter. Grande, em quê? Grande, como, se, como escrevia João Miguel Tavares, no DN, os votantes de António Costa, todos juntos, não davam para encher o Estádio da Luz?

O que se passou em Lisboa, no domingo passado, convida a uma profunda reflexão em torno da qualidade da nossa democracia. Se essa reflexão continuar a não ser feita, se os políticos não perceberem de vez que ouvir os cidadãos é mais, muito mais, do que convidá-los a ir às urnas, então talvez um dia descubram que foram votar sozinhos, rodeados pelos seus apoiantes e correligionários. O que provavelmente não os impedirá de celebrar festivamente a vitória, quiçá com a ajuda de velhotes metidos em autocarros nos vários cantos da província, mesmo sem saberem muito bem ao que vão
."

Mário Contumélias

Divulgue o seu blog!