Distância histórica
"Quase somos levados a esquecer a perspectiva histórica como única capaz de nos situar no tempo e no espaço.
Inquestionáveis, os ditames da conjuntura económica sobre a nossa vida colectiva: é infindável a bateria de indicadores nacionais e internacionais cujo comportamento os media vão despejando – crescimento e desemprego, inflação e taxa de juro, saldos públicos e de transacções correntes, produtividade e competitividade, e por aí fora –, numa sucessão que condiciona a percepção da riqueza de cada país, a estabilidade de cada governo e o sentimento de bem-estar de cada cidadão individual. Mergulhados nesta lógica, quase somos levados a esquecer a perspectiva histórica como única capaz de nos situar no tempo e no espaço, reconduzindo-nos às dimensões de progresso e falibilidade que marcam o construtivismo humano.
Vem isto acerca do já octogenário Angus Maddison e da notícia da recente publicação da vigésima obra da sua conta pessoal (”Contours of the World Economy 1–2030 AD, Essays in Macro-Economic History”), a somar à vasta investigação que dedicou – num quadro académico (destaque para a Universidade de Groningen) ou profissional (consultoria e 25 anos de OCDE) – a “explicar diferenças no desempenho de crescimento e nos níveis de rendimento das nações”, isto é, a interpretar as vias e padrões de evolução – interacção ou autonomia, avanço ou atraso, convergência ou divergência, recuo ou ‘catch-up’ – evidenciados pelo desenvolvimento económico mundial em termos milenares e em períodos específicos.
Não é possível enumerar, em tão curto espaço, os múltiplos contributos científicos que – na tradição de Colin Clark e Simon Kuznets e recorrendo às potentes metodologias de autores como Geary e Khamis ou Kravis, Heston e Summers - ficam a crédito desse vulto da história económica. Só não deverá omitir-se a perspectiva desafiante com que confrontou ou relativizou conhecimentos/conceitos/processos antes tidos por adquiridos, sempre preferindo o gradualismo e o sincronismo a leituras cíclicas (as “ondas longas” de Kondratieff ou os “movimentos seculares secundários” de Kuznets) ou descontínuas (os ‘clusters’ de inovação de Schumpeter ou os ‘take-offs’ de Rostow).
Assim sendo, limito-me a cotejar os dados quantitativos por ele trabalhados sobre as dinâmicas produtiva, populacional e de nível de vida à escala global e de longo prazo. Ressaltam óbvias diferenças de monta quando comparados os dois milénios: (I) à pequena quebra do rendimento mundial ‘per capita’ até 1000 (apenas acomodando um moderado crescimento populacional de 20%) contrapõe-se o seu forte crescimento subsequente (multiplicação por 13, para um factor 22,7 na população), sobretudo após a Revolução Industrial; (II) aos valores que aproximavam os países ricos e pobres há 1000 e 2000 anos contrapõe-se um significativo incremento das desigualdades de rendimento na actualidade (diferencial da ordem de 7 para 1).
Outras constatações sugestivas: (I) a Ásia, que representava cerca de 3/4 da população no ano 1 da era cristã e pouco menos em termos de produto (com Índia e China a valerem em torno de um terço e um quarto dos totais mundiais) e ainda estava nos 68 a 71% em 1820 (com 37% de chineses e 28% de produção indiana), conta hoje com menos de 60% da população do planeta (17 e 20% para Índia e China) e apenas 37% do PIB global (5 e 12%); (II) a Europa Ocidental decai populacionalmente para 6,5% do total após um rácio largamente estável (de 11 a 13%) durante dezanove séculos, em contraste com um peso produtivo a subir de 14 para 23% até 1820 e a cair depois para 20,5%; (III) EUA e Japão, com expressão apenas relevante nos dois últimos séculos, observam registos populacionais inversos (de 1 e 3%, em 1820, para 4,7% e 2,1%) e notórios saltos produtivos (de 2 e 3% para 22% e 7,3%); (IV) a Europa de Leste regride visivelmente nestes dois séculos (de 9% da população e do PIB, em 1820, para 7% e 5,5%); (V) América Latina e África conhecem evoluções ainda menos invejáveis pois que, após um bom primeiro milénio (de 10% para 15 a 16% da população e do PIB), aquela regride até 1820 (2,1% dos totais) e depois recupera (8,5% dos totais) enquanto esta definha até hoje (14% da população e pouco mais de 3% do PIB).
O resto e muito mais terá de ser explorado na fonte. Com ganhos certos para os que busquem na compreensão do passado lições para o presente e rumos para o futuro…"
Fernando Freire de Sousa
Inquestionáveis, os ditames da conjuntura económica sobre a nossa vida colectiva: é infindável a bateria de indicadores nacionais e internacionais cujo comportamento os media vão despejando – crescimento e desemprego, inflação e taxa de juro, saldos públicos e de transacções correntes, produtividade e competitividade, e por aí fora –, numa sucessão que condiciona a percepção da riqueza de cada país, a estabilidade de cada governo e o sentimento de bem-estar de cada cidadão individual. Mergulhados nesta lógica, quase somos levados a esquecer a perspectiva histórica como única capaz de nos situar no tempo e no espaço, reconduzindo-nos às dimensões de progresso e falibilidade que marcam o construtivismo humano.
Vem isto acerca do já octogenário Angus Maddison e da notícia da recente publicação da vigésima obra da sua conta pessoal (”Contours of the World Economy 1–2030 AD, Essays in Macro-Economic History”), a somar à vasta investigação que dedicou – num quadro académico (destaque para a Universidade de Groningen) ou profissional (consultoria e 25 anos de OCDE) – a “explicar diferenças no desempenho de crescimento e nos níveis de rendimento das nações”, isto é, a interpretar as vias e padrões de evolução – interacção ou autonomia, avanço ou atraso, convergência ou divergência, recuo ou ‘catch-up’ – evidenciados pelo desenvolvimento económico mundial em termos milenares e em períodos específicos.
Não é possível enumerar, em tão curto espaço, os múltiplos contributos científicos que – na tradição de Colin Clark e Simon Kuznets e recorrendo às potentes metodologias de autores como Geary e Khamis ou Kravis, Heston e Summers - ficam a crédito desse vulto da história económica. Só não deverá omitir-se a perspectiva desafiante com que confrontou ou relativizou conhecimentos/conceitos/processos antes tidos por adquiridos, sempre preferindo o gradualismo e o sincronismo a leituras cíclicas (as “ondas longas” de Kondratieff ou os “movimentos seculares secundários” de Kuznets) ou descontínuas (os ‘clusters’ de inovação de Schumpeter ou os ‘take-offs’ de Rostow).
Assim sendo, limito-me a cotejar os dados quantitativos por ele trabalhados sobre as dinâmicas produtiva, populacional e de nível de vida à escala global e de longo prazo. Ressaltam óbvias diferenças de monta quando comparados os dois milénios: (I) à pequena quebra do rendimento mundial ‘per capita’ até 1000 (apenas acomodando um moderado crescimento populacional de 20%) contrapõe-se o seu forte crescimento subsequente (multiplicação por 13, para um factor 22,7 na população), sobretudo após a Revolução Industrial; (II) aos valores que aproximavam os países ricos e pobres há 1000 e 2000 anos contrapõe-se um significativo incremento das desigualdades de rendimento na actualidade (diferencial da ordem de 7 para 1).
Outras constatações sugestivas: (I) a Ásia, que representava cerca de 3/4 da população no ano 1 da era cristã e pouco menos em termos de produto (com Índia e China a valerem em torno de um terço e um quarto dos totais mundiais) e ainda estava nos 68 a 71% em 1820 (com 37% de chineses e 28% de produção indiana), conta hoje com menos de 60% da população do planeta (17 e 20% para Índia e China) e apenas 37% do PIB global (5 e 12%); (II) a Europa Ocidental decai populacionalmente para 6,5% do total após um rácio largamente estável (de 11 a 13%) durante dezanove séculos, em contraste com um peso produtivo a subir de 14 para 23% até 1820 e a cair depois para 20,5%; (III) EUA e Japão, com expressão apenas relevante nos dois últimos séculos, observam registos populacionais inversos (de 1 e 3%, em 1820, para 4,7% e 2,1%) e notórios saltos produtivos (de 2 e 3% para 22% e 7,3%); (IV) a Europa de Leste regride visivelmente nestes dois séculos (de 9% da população e do PIB, em 1820, para 7% e 5,5%); (V) América Latina e África conhecem evoluções ainda menos invejáveis pois que, após um bom primeiro milénio (de 10% para 15 a 16% da população e do PIB), aquela regride até 1820 (2,1% dos totais) e depois recupera (8,5% dos totais) enquanto esta definha até hoje (14% da população e pouco mais de 3% do PIB).
O resto e muito mais terá de ser explorado na fonte. Com ganhos certos para os que busquem na compreensão do passado lições para o presente e rumos para o futuro…"
Fernando Freire de Sousa
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