UMA VERDADE INCONVENIENTE

"Num encontro em Lisboa, o antigo cançonetista Bob Geldof informou a audiência de que os senhores que mandam em Angola são "criminosos". Vinda de quem fez carreira do auxílio tentado aos oprimidos de África e do auxílio imprevisto aos ditadores que os oprimem, a frase não é uma exibição de coerência. Inúmeros comentadores, porém, louvaram a quebra do "silêncio conivente" e a portentosa exibição de coragem.

Sinceramente, também não vejo porquê. Apesar do desconforto, os administradores do Banco Espírito Santo, que organizou o encontro, não costumam reagir aos tiros. Apesar do desagradável currículo, o Governo de Luanda costuma abater os detractores estrangeiros.

Coragem não é isso. Coragem é desfilar no gay pride em Teerão. É gritar o amor pelo Benfica no meio dos SuperDragões. É viajar com George W. Bush a África e, na volta, escrever um artigo para uma revista de grande circulação em que se elogia o papel do Presidente dos EUA no auxílio ao continente: um plano de emergência que fornece medicamentos gratuitos a 1,3 milhões de pessoas; um terço do dinheiro do Fundo Global de combate à sida, à tuberculose e à malária; 50% de toda a ajuda alimentar; 350 milhões de dólares para doenças tropicais facilmente erradicáveis; apoios de 1200 milhões à Tanzânia e ao Gana; etc.

Geldof, reconheça-se, cometeu esta última loucura. Aconteceu há dois ou três meses na Time e, pelo menos por cá, não me lembro que tivesse suscitado aplausos pela irreverência, o desafio à conivência e o incómodo causado. Naturalmente. Só elogiamos a capacidade de incomodar quando não nos sentimos incomodados. E conceder que Bush, a popular incarnação do Mal, é o estadista que mais contribuiu para melhorar a vida dos africanos (palavras de Geldof) já entra no campo do masoquismo. A proclamada comiseração com a sorte dos pobres da Terra não merece tanto. De facto, não merece quase nada, excepto uma retórica vazia e inconsequente, que não ajuda os destinatários mas consola imenso os remetentes."

Alberto Gonçalves