quarta-feira, julho 02, 2008

FAZER CIDADE, DESFAZER CIDADES

"Após um discurso naturalmente devotado ao louvor da própria (e decerto excelsa) obra, Fernando Ruas, presidente da câmara de Viseu, reagiu com insinuações curiosas a um deputado municipal que o acusou de tiques "soviéticos". Como o deputado em questão é Hélder Amaral, representante do CDS também em São Bento e de origem africana, o episódio ganhou aura de "racista", mas esse não é o ponto.

O ponto é que não se percebe a irritação do dr. Ruas. Para o autarca nacional médio, a comparação com a URSS devia ser uma medalha no currículo. Para quem acumula com o cargo de presidente da Associação Nacional de Municípios, devia ser requisito obrigatório. Nunca uma classe profissional, sindicalistas incluídos, fez tanto quanto os autarcas para aproximar as nossas povoações dos encantadores subúrbios do antigo Leste europeu.

A pretexto do "progresso", o municipalismo dito democrático esforça-se há décadas por arrasar a paisagem existente e reconstruí-la segundo os rigorosos princípios que orientam a cabeça de cada cacique. Uma interessante mistura de culto da personalidade, inventividade financeira e geral incompetência descambou, como não poderia deixar de descambar, na interminável parada que por aí vai. Enterrámos o país miserável e bonitinho e, num ápice, erguemos um país remendado e grotesco, repleto de rotundas, "espelhos de água", bairros melancólicos, barracões, entulho diverso e, a título de pechisbeque, "arte" pública.

Enquanto manifestação do indiscriminado poder de cada régulo, a mera "arte" pública daria um compêndio. Por limites de espaço, dou apenas um exemplo. Em Matosinhos, onde nasci, pretendeu-se há anos esconder a praia atrás de edifícios medonhos e dos delírios do sr. Souto Moura. Aos poucos, conseguiu-se. Restou, porém, um bocadinho de mar a descoberto, que urgia tapar. A solução passou pela encomenda a uma "escultora" americana: uma rede gigantesca suspensa num aro de metal. Inaugurada em 2004, a aberração custou 940 mil euros e, esteticamente degradada à nascença, materialmente degradou-se logo a seguir. Um problema? Nem por isso. Por estes dias, a câmara substituiu a rede (170 mil euros) e negociou uma compensação com a "artista": a doação ao município de nova "escultura" de valor semelhante. Ou seja, conseguiu duas aberrações saloias pelo preço de uma (mais arranjos), proeza que encheu de orgulho o autarca indígena.

Sucede que o autarca de Matosinhos não é amostra rara: é o padrão vigente entre os membros da associação a que o sr. Ruas preside com orgulho. E cuja acção só não é "soviética" num pormenor: na URSS, o povo era obrigado a engolir o horror; aqui, a julgar pela indiferença, o povo tolera-o sem dificuldade e, em certos casos, até o aprecia. Melhor para o povo
."

Alberto Gonçalves

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