A guerra não é a guerra
"Os israelitas, alarmados ante a ameaça de fornecimento de sistemas anti-mísseis russos ao Irão e à Síria, foram os primeiros a entender os sinais e, sem grandes alardes, o ministério da Defesa de Telavive interditou a venda de armamento ofensivo à Geórgia para não comprometer as relações com a Rússia.
O aviso de Moscovo fora dado a 20 de Abril quando um caça russo abateu na Abkázia um avião de reconhecimento georgiano não-tripulado, de fabrico israelita, e Telavive, fiel ao princípio de que para bom entendedor meia palavra basta, decidiu imediatamente suspender as vendas de material aeronáutico a Tbilissi.
Moscovo negou responsabilidade pelo incidente, ocorrido duas semanas após alemães e franceses se terem oposto na cimeira da NATO em Bucareste à proposta de Washington para iniciar o processo formal de adesão da Geórgia e da Ucrânia, mas os israelitas compreenderam que os contratos militares com Tbilissi não justificavam arriscar a hostilidade da Rússia.
Esferas de influência
As divisões na NATO quanto à eventual integração da Geórgia, a advertência de Moscovo de que a declaração unilateral de independência do Kosovo e o projecto norte-americano de defesa anti-mísseis na República Checa e na Polónia teriam consequências globais justificavam as cautelas de Telavive ante a iminência de um acto de força por parte da Rússia contra o aliado mais exposto de Washington.
Após meses de atentados e confrontos, envolvendo russos, georgianos, separatistas ossetas e abkazes, falhada uma proposta alemã para relançamento das negociações sobre o estatuto da Abkázia, o presidente georgiano aventurou-se numa acção militar para capturar a Ossétia do sul.
A retaliação do Kremlin em larga escala era inevitável, quanto mais não fosse para evitar o agravamento das instáveis situações nas repúblicas russas do Daguestão, Ingushétia e Tchetchénia, e justificava-se para impor a ordem moscovita no Cáucaso, evitando, por extensão, um reacender do conflito entre a Arménia e o Azerbeijão que pusesse em causa os interesses da Rússia.
Vladimir Putin, cujas declarações taxativas são habitualmente subestimadas, acusou a Geórgia de genocídio, assumiu as consequências inevitáveis do conflito e impôs a lei da força.
Na União Europeia manifestaram-se as divisões tradicionais face à Rússia, mas também ninguém se atreveu a dizer publicamente que as intervenções televisivas do presidente da Geórgia apelando à ajuda ocidental flanqueado com a bandeira comunitária entravam na área do desaforo.
Em Washington ponderaram-se os riscos de sustentar um aliado que ignora as relações de força no Cáucaso e os interesses globais dos Estados Unidos.
Um perdedor na Geórgia
Mikhail Saakashvili, segundo Putin, desencadeou "uma aventura sangrenta", visando implicar outros países e, sobretudo a NATO, num acto de agressão que, afinal, resultaria fatalmente num "golpe mortal na integridade territorial da própria Geórgia".
Putin falou, deixando o presidente Dmitri Medvedev claramente em segundo plano, e os objectivos estratégicos de Moscovo ficaram claros.
A assunção plena da tutela sobre entidades separatistas na Ossétia do Sul e na Abkázia, além do enclave da Transdnistria na Moldova, visa obrigar a renegociar qualquer acordo de redefinição de fronteiras na Europa, incluindo o Kosovo, em termos de esferas de influência.
O alargamento da NATO à Geórgia e à Ucrânia é inegociável e as controvérsias com a Ucrânia sobre o arrendamento (acordado até 2017) da base naval de Sevastopol e, inclusivamente, o estatuto da península da Crimeia, maioritariamente russa, estão de novo em aberto.
O retorno em força da Rússia numa acção militar, tão fulgurante quanto o recurso recorrente às chantagens sobre fornecimentos de hidrocarbonetos, tem sobretudo a ver com a redefinição de áreas de influência.
A contenção das aspirações anti-russas, criadas pelas revoluções ucranianas e georgianas, levam, presentemente, à tentativa de conter a integração de estados fora do controlo de Moscovo numa esfera pró-Nato, e, cumulativamente, implicam a criação de dificuldades à estruturação de linhas de abastecimento de hidrocarbonetos alternativas às detidas por empresas russas.
Para a Rússia, além do interesse em desqualificar o projecto Nabuco, sustentado pela produção do Mar Cáspio e que atravessará a Geórgia rumo à Turquia, será ainda mais importante tentar controlar os fornecimentos de hidrocarbonetos que irão abastecer a China a partir da Ásia Central, mas nesta questão Moscovo dificilmente conseguirá impor a sua vontade.
Pior que um tártaro
Criar condições para derrubar Saakashvili e reverter a orientação pró-ocidental da Geórgia é apenas um dos desideratos de Moscovo que considera as antigas repúblicas soviéticas agregadas na Comunidade de Estados Independentes como estados-clientes.
Dar-se ao respeito perdido nos anos de Gorbatchov e Ielstin é o intento essencial de Moscovo e, enquanto isso não entrar na lógica estratégica de americanos e europeus, já bem apreendida por chineses e indianos, teremos conflitos sempre aquém da guerra e muito perto do risco de grande guerra.
Para os europeus, divididos entre o irredentismo anti-russo dos estados bálticos, dos checos e da Polónia e a contenção de franceses, alemães ou italianos, a margem de manobra é escassa. Os abastecimentos russos que representam 40% do gás natural consumido na União são impossíveis de substituir e, assim, os apelos ao respeito pela integridade territorial da Geórgia não passam de uma quimera.
Para qualquer administração de Washington enquadrar questões mais imediatas de Teerão a Pyongyang será sempre mais valioso do que trunfos no Cáucaso, mas a acomodação dos interesses de Moscovo revela-se cada vez mais problemática.
Face à potência russa tudo o resto está em aberto porque é uma questão de relações de força e Moscovo encara intrusões na sua alegada área de influência como afrontas estratégicas.
Há um provérbio russo que diz: "Pior que um tártaro só um hóspede não convidado". Vem dos tempos em que a Rússia esteve sob domínio mongol do século XIII ao século XV.
Todos são tártaros invasores, hóspedes não convidados na grande casa da Rússia e das suas comunidades espalhadas pelo chamado "estrangeiro próximo"; ninguém mostra respeito suficiente pelos vastos e justos interesses de Moscovo. É esta obsessão que sustenta a lógica estratégica no Kremlin."
João Carlos Barradas
O aviso de Moscovo fora dado a 20 de Abril quando um caça russo abateu na Abkázia um avião de reconhecimento georgiano não-tripulado, de fabrico israelita, e Telavive, fiel ao princípio de que para bom entendedor meia palavra basta, decidiu imediatamente suspender as vendas de material aeronáutico a Tbilissi.
Moscovo negou responsabilidade pelo incidente, ocorrido duas semanas após alemães e franceses se terem oposto na cimeira da NATO em Bucareste à proposta de Washington para iniciar o processo formal de adesão da Geórgia e da Ucrânia, mas os israelitas compreenderam que os contratos militares com Tbilissi não justificavam arriscar a hostilidade da Rússia.
Esferas de influência
As divisões na NATO quanto à eventual integração da Geórgia, a advertência de Moscovo de que a declaração unilateral de independência do Kosovo e o projecto norte-americano de defesa anti-mísseis na República Checa e na Polónia teriam consequências globais justificavam as cautelas de Telavive ante a iminência de um acto de força por parte da Rússia contra o aliado mais exposto de Washington.
Após meses de atentados e confrontos, envolvendo russos, georgianos, separatistas ossetas e abkazes, falhada uma proposta alemã para relançamento das negociações sobre o estatuto da Abkázia, o presidente georgiano aventurou-se numa acção militar para capturar a Ossétia do sul.
A retaliação do Kremlin em larga escala era inevitável, quanto mais não fosse para evitar o agravamento das instáveis situações nas repúblicas russas do Daguestão, Ingushétia e Tchetchénia, e justificava-se para impor a ordem moscovita no Cáucaso, evitando, por extensão, um reacender do conflito entre a Arménia e o Azerbeijão que pusesse em causa os interesses da Rússia.
Vladimir Putin, cujas declarações taxativas são habitualmente subestimadas, acusou a Geórgia de genocídio, assumiu as consequências inevitáveis do conflito e impôs a lei da força.
Na União Europeia manifestaram-se as divisões tradicionais face à Rússia, mas também ninguém se atreveu a dizer publicamente que as intervenções televisivas do presidente da Geórgia apelando à ajuda ocidental flanqueado com a bandeira comunitária entravam na área do desaforo.
Em Washington ponderaram-se os riscos de sustentar um aliado que ignora as relações de força no Cáucaso e os interesses globais dos Estados Unidos.
Um perdedor na Geórgia
Mikhail Saakashvili, segundo Putin, desencadeou "uma aventura sangrenta", visando implicar outros países e, sobretudo a NATO, num acto de agressão que, afinal, resultaria fatalmente num "golpe mortal na integridade territorial da própria Geórgia".
Putin falou, deixando o presidente Dmitri Medvedev claramente em segundo plano, e os objectivos estratégicos de Moscovo ficaram claros.
A assunção plena da tutela sobre entidades separatistas na Ossétia do Sul e na Abkázia, além do enclave da Transdnistria na Moldova, visa obrigar a renegociar qualquer acordo de redefinição de fronteiras na Europa, incluindo o Kosovo, em termos de esferas de influência.
O alargamento da NATO à Geórgia e à Ucrânia é inegociável e as controvérsias com a Ucrânia sobre o arrendamento (acordado até 2017) da base naval de Sevastopol e, inclusivamente, o estatuto da península da Crimeia, maioritariamente russa, estão de novo em aberto.
O retorno em força da Rússia numa acção militar, tão fulgurante quanto o recurso recorrente às chantagens sobre fornecimentos de hidrocarbonetos, tem sobretudo a ver com a redefinição de áreas de influência.
A contenção das aspirações anti-russas, criadas pelas revoluções ucranianas e georgianas, levam, presentemente, à tentativa de conter a integração de estados fora do controlo de Moscovo numa esfera pró-Nato, e, cumulativamente, implicam a criação de dificuldades à estruturação de linhas de abastecimento de hidrocarbonetos alternativas às detidas por empresas russas.
Para a Rússia, além do interesse em desqualificar o projecto Nabuco, sustentado pela produção do Mar Cáspio e que atravessará a Geórgia rumo à Turquia, será ainda mais importante tentar controlar os fornecimentos de hidrocarbonetos que irão abastecer a China a partir da Ásia Central, mas nesta questão Moscovo dificilmente conseguirá impor a sua vontade.
Pior que um tártaro
Criar condições para derrubar Saakashvili e reverter a orientação pró-ocidental da Geórgia é apenas um dos desideratos de Moscovo que considera as antigas repúblicas soviéticas agregadas na Comunidade de Estados Independentes como estados-clientes.
Dar-se ao respeito perdido nos anos de Gorbatchov e Ielstin é o intento essencial de Moscovo e, enquanto isso não entrar na lógica estratégica de americanos e europeus, já bem apreendida por chineses e indianos, teremos conflitos sempre aquém da guerra e muito perto do risco de grande guerra.
Para os europeus, divididos entre o irredentismo anti-russo dos estados bálticos, dos checos e da Polónia e a contenção de franceses, alemães ou italianos, a margem de manobra é escassa. Os abastecimentos russos que representam 40% do gás natural consumido na União são impossíveis de substituir e, assim, os apelos ao respeito pela integridade territorial da Geórgia não passam de uma quimera.
Para qualquer administração de Washington enquadrar questões mais imediatas de Teerão a Pyongyang será sempre mais valioso do que trunfos no Cáucaso, mas a acomodação dos interesses de Moscovo revela-se cada vez mais problemática.
Face à potência russa tudo o resto está em aberto porque é uma questão de relações de força e Moscovo encara intrusões na sua alegada área de influência como afrontas estratégicas.
Há um provérbio russo que diz: "Pior que um tártaro só um hóspede não convidado". Vem dos tempos em que a Rússia esteve sob domínio mongol do século XIII ao século XV.
Todos são tártaros invasores, hóspedes não convidados na grande casa da Rússia e das suas comunidades espalhadas pelo chamado "estrangeiro próximo"; ninguém mostra respeito suficiente pelos vastos e justos interesses de Moscovo. É esta obsessão que sustenta a lógica estratégica no Kremlin."
João Carlos Barradas
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