MEMÓRIAS DOURADAS
"Pronto, confesso. Não via desporto há anos e há dias que, por culpa dos Jogos Olímpicos, não vejo outra coisa. Quer dizer, "desporto" é demasiado lato: o que vejo é a natação. Continua vago: só vejo as provas em que participa Michael Phelps, a identidade nada secreta do Super-homem. Cada prova dura um minuto ou dois, eu passo horas acordado, a maldizer a escolha de um país remoto para sediar as Olimpíadas e os milhões que o canal NBC pagou a fim de assegurar os espectáculos de Phelps em horário nobre norte-americano. Tudo somado, o mundo conjurou para nos trazer o moço de Baltimore no meio da madrugada, o que me obriga a quantidades desaconselháveis de café. Se começar a sofrer do fígado ou dos nervos, tenciono apresentar as despesas ao Comité Olímpico.
Por enquanto, ainda entorpecido de gozo e sono, agradeço aos senhores do COI os pedacinhos que separam o momento em que Phelps se atira à água do momento em que arrebata mais uma medalha e um recorde. Ou, se a RTP não interrompe a emissão para exibir os atletas nacionais a chafurdarem nas franjas da classificação, do momento em que Phelps escuta no pódio o "Star and Spangled Banner", um dos raros acontecimentos em que a repetição aumenta o entusiasmo.
Porquê o entusiasmo? Em parte, porque, numa era em que a norma é justamente a inversa, consola observar um rapaz de aspecto trivial realizar actos extraordinários. Em parte, porque o rapaz é um génio. Não um génio artístico, científico ou dos demais ramos que verdadeiramente contam: Phelps é um génio do inútil, que, à semelhança de tantos, personifica a irracionalidade subjacente ao desporto, mas que, ao contrário de todos, o faz na perfeição possível. Ou, no caso dele, a impossível. Uma ou duas vezes na vida, o esforço da razão mete férias e abre-nos as portas a fenómenos assim inconsequentes e felizes. O mito atlético que povoou a minha infância teve o nome de Mark Spitz. Se bem que com outra assinatura, é uma enorme surpresa rememorá-lo agora."
Alberto Gonçalves
Por enquanto, ainda entorpecido de gozo e sono, agradeço aos senhores do COI os pedacinhos que separam o momento em que Phelps se atira à água do momento em que arrebata mais uma medalha e um recorde. Ou, se a RTP não interrompe a emissão para exibir os atletas nacionais a chafurdarem nas franjas da classificação, do momento em que Phelps escuta no pódio o "Star and Spangled Banner", um dos raros acontecimentos em que a repetição aumenta o entusiasmo.
Porquê o entusiasmo? Em parte, porque, numa era em que a norma é justamente a inversa, consola observar um rapaz de aspecto trivial realizar actos extraordinários. Em parte, porque o rapaz é um génio. Não um génio artístico, científico ou dos demais ramos que verdadeiramente contam: Phelps é um génio do inútil, que, à semelhança de tantos, personifica a irracionalidade subjacente ao desporto, mas que, ao contrário de todos, o faz na perfeição possível. Ou, no caso dele, a impossível. Uma ou duas vezes na vida, o esforço da razão mete férias e abre-nos as portas a fenómenos assim inconsequentes e felizes. O mito atlético que povoou a minha infância teve o nome de Mark Spitz. Se bem que com outra assinatura, é uma enorme surpresa rememorá-lo agora."
Alberto Gonçalves
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