A Declaração
"A distância entre intenção e realidade, é o que, no imaginário popular, mais comummente permite desvalorizar a Declaração.
Completaram-se ontem (quarta-feira) os sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, reunida no Palais de Chaillot, em Paris. A Declaração de 1948 só pode ser entendida no contexto daqueles anos. Ela constitui uma reacção contra a barbárie da segunda guerra mundial e do genocídio, a vontade de começar de novo e de deixar claro que há determinados limites morais e legais, explicitados na forma de direitos individuais, que os Estados não podem ultrapassar sem sofrer com isso a condenação da humanidade.
A Declaração foi redigida pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, presidida por Eleanor Roosevelt e constituída, entre outros, por John Humphrey e René Cassin. O conteúdo do documento espelha a relação de forças da altura. O bloco ocidental insistia nos direitos civis e políticos. O bloco socialista nos direitos económicos, sociais e culturais. Aquilo que resultou foi uma síntese algo difícil, englobando ambos os tipos de direitos, mas que impediu a existência de qualquer voto contra na Assembleia Geral (houve abstenções: alguns países do Leste da Europa, a Arábia Saudita e a África do Sul).
A Declaração é o produto de um acordo prático, mas que não tem subjacente nenhum consenso em relação à sua fundamentação teórica, às razões pelas quais consideramos que existem direitos atribuíveis a todos os seres humanos e que esses direitos são os que constam da Declaração. Essa mesma conclusão foi atingida pelo painel nomeado pela UNESCO – que funcionou paralelamente com a comissão presidida por Eleanor Roosevelt – no sentido de explicitar os fundamentos filosóficos de uma declaração internacional dos direitos do homem. Jacques Maritain, um dos membros do painel da UNESCO, quando confrontado com o espanto causado pelo facto de um painel tão diversificado ter chegado a um acordo sobre a lista de direitos a consagrar na Declaração, respondeu: “concordamos quanto aos direitos, mas na condição de que ninguém nos pergunte porquê”. Com efeito, o painel de filósofos concluiu que não havia uma fundamentação unânime para os direitos consagrados na Declaração, mas antes diversas fundamentações possíveis, que o tempo poderia, eventualmente, fazer convergir.
Na verdade, a passagem do tempo fez aumentar a consciência dos problemas teóricos e práticos inerentes à Declaração e, a fortiori, a todo o corpo do Direito Internacional dos Direitos do Homem que aí teve a sua origem e conheceu depois grande expansão, especialmente após a aprovação dos dois Pactos de 1966, um sobre direitos civis e políticos, o outro sobre direitos económicos, sociais e culturais. Podemos recensear alguns desses problemas: o da compatibilidade entre as duas classes de direitos referidas na frase anterior; o da universalidade dos direitos e da sua aceitação pelas culturas asiáticas, mais comunitaristas e menos individualistas do que a cultura ocidental; o da falta de princípios unificadores dos diversos direitos, já que o princípio mais geral da “dignidade humana” é controverso e dá origem a diversas interpretações, tanto ao nível da filosofia, como ao nível da jurisprudência; o da constante distância entre as intenções expressas na Declaração e a realidade dos abusos contra os direitos mais básicos.
Este último ponto, o da distância entre intenção e realidade, é o que, no imaginário popular, mais comummente permite desvalorizar a Declaração. Mas temos de reconhecer que, durante estes sessenta anos, um longo caminho foi percorrido. Os Estados deixaram de considerar que tudo o que se passa dentro das suas fronteiras é da sua exclusiva competência. Mesmo aqueles Estados que violam os direitos humanos mais básicos de forma intencional e continuada, sentem agora a obrigação de vir dar explicações em público e até de prestar homenagem aos direitos que violam. Esta hipocrisia é boa, na medida em que constitui, em si mesma, um primeiro sinal de cedência ao idioma dos direitos humanos. Ela mostra até que ponto os direitos humanos penetraram no imaginário colectivo global e se transformaram, como diz Michael Ignatieff, na “nossa linguagem comum contra a dor e a humilhação”."
João Cardoso Rosas
Completaram-se ontem (quarta-feira) os sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, reunida no Palais de Chaillot, em Paris. A Declaração de 1948 só pode ser entendida no contexto daqueles anos. Ela constitui uma reacção contra a barbárie da segunda guerra mundial e do genocídio, a vontade de começar de novo e de deixar claro que há determinados limites morais e legais, explicitados na forma de direitos individuais, que os Estados não podem ultrapassar sem sofrer com isso a condenação da humanidade.
A Declaração foi redigida pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, presidida por Eleanor Roosevelt e constituída, entre outros, por John Humphrey e René Cassin. O conteúdo do documento espelha a relação de forças da altura. O bloco ocidental insistia nos direitos civis e políticos. O bloco socialista nos direitos económicos, sociais e culturais. Aquilo que resultou foi uma síntese algo difícil, englobando ambos os tipos de direitos, mas que impediu a existência de qualquer voto contra na Assembleia Geral (houve abstenções: alguns países do Leste da Europa, a Arábia Saudita e a África do Sul).
A Declaração é o produto de um acordo prático, mas que não tem subjacente nenhum consenso em relação à sua fundamentação teórica, às razões pelas quais consideramos que existem direitos atribuíveis a todos os seres humanos e que esses direitos são os que constam da Declaração. Essa mesma conclusão foi atingida pelo painel nomeado pela UNESCO – que funcionou paralelamente com a comissão presidida por Eleanor Roosevelt – no sentido de explicitar os fundamentos filosóficos de uma declaração internacional dos direitos do homem. Jacques Maritain, um dos membros do painel da UNESCO, quando confrontado com o espanto causado pelo facto de um painel tão diversificado ter chegado a um acordo sobre a lista de direitos a consagrar na Declaração, respondeu: “concordamos quanto aos direitos, mas na condição de que ninguém nos pergunte porquê”. Com efeito, o painel de filósofos concluiu que não havia uma fundamentação unânime para os direitos consagrados na Declaração, mas antes diversas fundamentações possíveis, que o tempo poderia, eventualmente, fazer convergir.
Na verdade, a passagem do tempo fez aumentar a consciência dos problemas teóricos e práticos inerentes à Declaração e, a fortiori, a todo o corpo do Direito Internacional dos Direitos do Homem que aí teve a sua origem e conheceu depois grande expansão, especialmente após a aprovação dos dois Pactos de 1966, um sobre direitos civis e políticos, o outro sobre direitos económicos, sociais e culturais. Podemos recensear alguns desses problemas: o da compatibilidade entre as duas classes de direitos referidas na frase anterior; o da universalidade dos direitos e da sua aceitação pelas culturas asiáticas, mais comunitaristas e menos individualistas do que a cultura ocidental; o da falta de princípios unificadores dos diversos direitos, já que o princípio mais geral da “dignidade humana” é controverso e dá origem a diversas interpretações, tanto ao nível da filosofia, como ao nível da jurisprudência; o da constante distância entre as intenções expressas na Declaração e a realidade dos abusos contra os direitos mais básicos.
Este último ponto, o da distância entre intenção e realidade, é o que, no imaginário popular, mais comummente permite desvalorizar a Declaração. Mas temos de reconhecer que, durante estes sessenta anos, um longo caminho foi percorrido. Os Estados deixaram de considerar que tudo o que se passa dentro das suas fronteiras é da sua exclusiva competência. Mesmo aqueles Estados que violam os direitos humanos mais básicos de forma intencional e continuada, sentem agora a obrigação de vir dar explicações em público e até de prestar homenagem aos direitos que violam. Esta hipocrisia é boa, na medida em que constitui, em si mesma, um primeiro sinal de cedência ao idioma dos direitos humanos. Ela mostra até que ponto os direitos humanos penetraram no imaginário colectivo global e se transformaram, como diz Michael Ignatieff, na “nossa linguagem comum contra a dor e a humilhação”."
João Cardoso Rosas
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home