quinta-feira, fevereiro 19, 2009

UMA ESPÉCIE DE EVOLUÇÃO

"Nas celebrações do segundo centenário de Charles Darwin, confesso nem sempre identificar o que se celebra. Como nunca percebi os que invocam antepassados ilustres para reivindicarem prestígio presente, não percebo os que adoram partilhar a ascendência com uma espécie de símio. Enquanto descoberta científica, a selecção natural ou, mais apropriadamente, os processos da selecção natural foram uma revolução dramática e são, com poucas alterações pelo caminho, uma evidência tão digna de festejos quanto, por exemplo, os achados de Bohr, os quais, fora de meios circunscritos, ninguém assinala com a euforia devotada a Darwin. A causa é simples: ainda que signifiquem igualmente uma mudança de paradigma, os estudos em volta do átomo não se prestam a apropriações "leigas" com a mesma facilidade de A Origem das Espécies, obra sujeita a todos os abusos ideológicos.

Se, desde a sua publicação, louvar Darwin foi, para muitos, uma forma de atacar a tradição bíblica, actualmente o ataque centra-se num certo evangelismo protestante, que é sobretudo americano e ajuda a "demonstrar" a estupidez da América. Curiosamente, usa-se menos Darwin para demonstrar a estupidez do Islão, que recusa o evolucionismo por lei. E não se referem as oscilações do próprio Darwin entre o agnosticismo e a crença, e o cuidado com que procurou "compatibilizar" as esferas da ciência e da fé: ao alterar radicalmente a concepção do Homem e o seu lugar na História, A Origem das Espécies demoliu a interpretação literal do Velho Testamento, mas não o sentimento religioso, um equívoco alimentado pelos que, com as melhores e as piores das intenções, ergueram Darwin a símbolo do ateísmo.

Com grande liberdade teórica, outros tentaram erguer Darwin a outros implausíveis símbolos. Marx chegou a ver nos mecanismos da selecção das espécies a "legitimação" biológica para a luta de classes e o materialismo histórico, que culminariam no comunismo. E o darwinismo social propriamente dito imaginou que a sobrevivência dos mais aptos era conceito aplicável aos homens, o que abriu portas à eugenia e ao nazismo.

Darwin, porém, não pode ser responsabilizado pelas duas maiores calamidades do século XX. Ao contrário da visão teleológica destas, Marx e alguns dos "racialistas" acabaram por notar com desgosto que o mundo descrito por Darwin não concorre para um fim predeterminado nem se move por regras estritas: é um mundo em permanente mudança, onde o acaso desempenha papel fundamental. Darwin limitou-se a descrever o que acontece, e não o que gostaríamos que acontecesse. Se for justo retirar uma lição "social" do seu contributo, ei-la: A Origem das Espécies é também um tratado contra a doença das utopias, assumida ou disfarçadamente religiosas. É esse Darwin que eu celebro
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Alberto Gonçalves

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