sexta-feira, abril 24, 2009

Sem pés nem cabeça

"Desde os seus primórdios, nos anos 1950, que o êxito da variante de música ligeira a que se convencionou chamar rock (e seus derivados) assenta em dois golpes de génio publicitário. Um é fazer passar por "urgência criativa" a inépcia técnica da generalidade dos seus "artistas". O outro, e ainda mais genial,é transformar a pretensa "rebeldia" face ao "sistema" em lucro fácil para o "sistema".

Os Xutos & Pontapés, há décadas exímios praticantes do primeiro golpe, aplicaram agora o segundo, através de uma cantiga que alegadamente critica o eng. Sócrates e que, de acordo com os que engoliram a manobra de "marketing", constitui um grito de protesto contra o estado das coisas. A manobra pegou, e o disco que incluí Sem Eira Nem Beira já lidera os "tops" de vendas. Escusado dizer que o estado das coisas não promete mudar, excepto, talvez, pela ligeira melhoria das contas bancárias dos elementos da banda e respectivos editores.

Afinal, era essa a única mudança pretendida, e a única plausível quando os presuntivos agentes da insubmissão são comendadores da ordem do Infante e, como é habitual nestas histórias, gente com razoáveis padrões de conforto. Mesmo sob ditaduras a sério, os típicos militantes da cantiga enquanto arma provinham quase sempre das classes desafogadas, capazes de financiar aos meninos ociosos os exílios em França de que os verdadeiros oprimidos não dispunham.

Salvo por alguns tiques e ambições, o Governo do eng. Sócrates não é uma ditadura. Sobretudo, dificilmente pode ser tomado a sério, à semelhança dos que atacam o primeiro-ministro em cançonetas embaraçosas e, depois de garantida a aura "contestatária", dão entrevistas a confessar simpatia pelo homem, de modo a garantir que as benesses do poder não lhes fogem. Não é só no limitado talento que os Xutos & Pontapés imitam os Rolling Stones, que em 2005 gravaram um tema aparentemente avesso à administração americana (Sweet Neo Con) e desmentiram qualquer alusão a Bush a tempo de prosseguir uma digressão patrocinada pela Ameriquest, a (entretanto) falecida companhia de crédito imobiliário que foi uma das grandes financiadoras do Partido Republicano.

Analisado friamente, de resto, o refrão de Sem Eira Nem Beira não devia iludir ninguém: "Senhor engenheiro, dê-me um pouco de atenção." Ou, em bom português, um subsídio, o apoio de uma empresa pública, uma série de concertos a expensas do Estado, etc. Nem o Avô Cantigas é tão português e tão conformista. O autêntico disco anti-establishment do momento é o DVD interpretado por Charles Smith, mas não vem tendo grande sucesso, pelo menos entre quem de, e do, direito.
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Alberto Gonçalves

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