Um sabonete
"Acho absurdo comparar Barack Obama a um qualquer ídolo pop. É verdade que alguns ídolos pop também dão o nome, o rosto ou os slogans a peças de roupa, chocolates, canecas, porta-chaves, pastilhas elásticas, guarda-chuvas, ímanes de frigorífico, postais e bonecos de peluche. Mas muito poucos, ou nenhuns, têm secções de livrarias que lhes são exclusivamente dedicadas, os jornais que noticiam os seus feitos emoldurados nas lojas e lugar cativo e diário na capa das principais publicações americanas. Pelo menos em Nova Iorque, Obama é uma indústria ou nas recentes palavras da secretária da Casa Branca para os Assuntos Sociais, "a melhor marca do mundo" (extasiada, a senhora equivaleu Obama ao sabão Dove).
De facto, não me lembro de a cidade ser tão reverencial a um inquilino da Casa Branca, mesmo que democrata, mesmo que Clinton. Sou do tempo em que apenas os quiosques de Greenwich Village comercializavam cartazes e T-shirts com George W. Bush, embora invariavelmente o representassem como um tonto ou um perigoso manipulador (o paradoxo parecia escapar aos comerciantes e ao público). As representações do actual presidente oscilam entre a profunda admiração e o delírio destemperado. Se as (elevadas) taxas de aprovação de que Obama beneficia ao fim de cem dias não o distinguem da maioria dos seus antecessores em idêntico período, a intensidade dessa aprovação roça o religioso.
O religioso e, para os visitantes que não foram tocados pela crença, o ridículo. Afinal, tirando as sucessivas gaffes, as medidas típicas do frenesim "estatizante" que contamina a Terra desde a crise financeira e uma retórica nos negócios estrangeiros aparentemente refrescante e eventualmente irresponsável, o homem ainda não fez o que justificasse o lema da campanha e mudasse, supõe-se que no bom sentido, a América. O que não significa que a amabilíssima imprensa de que beneficia não tente provar o contrário.
Há dias, uma reportagem do New York Times pretendia revelar indícios de alteração nas relações raciais. Sem excepções, os pretos e os brancos entrevistados pelo diário confessavam sentir-se "mais próximos" uns dos outros. Coisas pequeninas: o aceno antes inexistente entre colegas de trabalho de etnias diferentes, o convite inédito ao vizinho para um churrasco de fim-de-semana, etc. A explicação é evidente: os brancos perceberam-se capazes de votar num "deles", os pretos perceberam-se elegíveis. Um tanto espantados, encontraram simultânea e mutuamente o que aqui se chama chão comum numa matéria vital, isto é, distinta do desporto e da cultura popular.
Óptimo. Ainda que eu não conheça país tão "integrado" quanto os EUA, até os EUA precisam de sarar as feridas herdadas de séculos de esclavagismo e de décadas de afirmação "identitária". A questão é: o que têm as acções de Obama a ver com isto? Obviamente, nada. Que se note, a sua principal influência resulta da mais aleatória das características, a cor da pele. Por este caminho, o melhor legado que o sacrossanto presidente se arrisca a deixar é, apenas, a respectiva imagem. Bate certo: com o "merchandising" que a vende, com o público que a adora e com aquilo que se espera de um político realmente moderno. No contexto, "moderno" não é um elogio."
Alberto Gonçalves
De facto, não me lembro de a cidade ser tão reverencial a um inquilino da Casa Branca, mesmo que democrata, mesmo que Clinton. Sou do tempo em que apenas os quiosques de Greenwich Village comercializavam cartazes e T-shirts com George W. Bush, embora invariavelmente o representassem como um tonto ou um perigoso manipulador (o paradoxo parecia escapar aos comerciantes e ao público). As representações do actual presidente oscilam entre a profunda admiração e o delírio destemperado. Se as (elevadas) taxas de aprovação de que Obama beneficia ao fim de cem dias não o distinguem da maioria dos seus antecessores em idêntico período, a intensidade dessa aprovação roça o religioso.
O religioso e, para os visitantes que não foram tocados pela crença, o ridículo. Afinal, tirando as sucessivas gaffes, as medidas típicas do frenesim "estatizante" que contamina a Terra desde a crise financeira e uma retórica nos negócios estrangeiros aparentemente refrescante e eventualmente irresponsável, o homem ainda não fez o que justificasse o lema da campanha e mudasse, supõe-se que no bom sentido, a América. O que não significa que a amabilíssima imprensa de que beneficia não tente provar o contrário.
Há dias, uma reportagem do New York Times pretendia revelar indícios de alteração nas relações raciais. Sem excepções, os pretos e os brancos entrevistados pelo diário confessavam sentir-se "mais próximos" uns dos outros. Coisas pequeninas: o aceno antes inexistente entre colegas de trabalho de etnias diferentes, o convite inédito ao vizinho para um churrasco de fim-de-semana, etc. A explicação é evidente: os brancos perceberam-se capazes de votar num "deles", os pretos perceberam-se elegíveis. Um tanto espantados, encontraram simultânea e mutuamente o que aqui se chama chão comum numa matéria vital, isto é, distinta do desporto e da cultura popular.
Óptimo. Ainda que eu não conheça país tão "integrado" quanto os EUA, até os EUA precisam de sarar as feridas herdadas de séculos de esclavagismo e de décadas de afirmação "identitária". A questão é: o que têm as acções de Obama a ver com isto? Obviamente, nada. Que se note, a sua principal influência resulta da mais aleatória das características, a cor da pele. Por este caminho, o melhor legado que o sacrossanto presidente se arrisca a deixar é, apenas, a respectiva imagem. Bate certo: com o "merchandising" que a vende, com o público que a adora e com aquilo que se espera de um político realmente moderno. No contexto, "moderno" não é um elogio."
Alberto Gonçalves
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