Uns e outros...
"Quando, em Julho do ano passado, o norueguês Anders Behring Breivik assassinou 69 pessoas numa ilha de Oslo, o Ocidente depressa percebeu que a culpa do massacre era partilhada pelo sr. Breivik e pela "cultura de morte" que ele representava. Sendo cristão, conservador, islamofóbico e, constou, sionista (?) e até maçon, não surpreendeu nada que o sr. Breivik imitasse a actividade favorita de inúmeros cristãos, conservadores, islamofóbicos, sionistas e maçons e desatasse aos tiros a quem lhe aparecesse pela frente. Quando, ao longo das últimas semanas, Mohamed Merah matou dois soldados franceses de ascendência argelina, um soldado francês de ascendência caribenha, um rabino e três crianças de uma escola judaica, o caso revelou outra complexidade. E o Ocidente revelou outra cautela no diagnóstico.
Afinal, o sr. Merah era um simpático muçulmano, cuja acção desesperada não comprometia ninguém: os muçulmanos simpáticos não se celebrizaram por matar à toa. Os devotos de Alá, de resto, mostraram-se imediatamente constrangidos pelos crimes, embora menos por pena das vítimas do que por receio de que os crimes implicassem consequências desagradáveis sobre a comunidade islâmica em França, no fundo a verdadeira vítima do sucedido. E será que o sr. Merah foi o verdadeiro culpado? Aparentemente, nem por isso. Mesmo à distância de Oxford, o "intelectual" Tariq Ramadan viu tudo, compreendeu tudo e explicou quase tudo. Em suma, o sr. Merah via- -se discriminado graças à sua origem, à cor da sua pele, à sua religião e ao seu nome.
O que ele perseguia, garante Ramadan, não divergia das ambições do mais banal e honrado dos mortais: igualdade, dignidade, estabilidade, um emprego decente e um lugar para viver. Por azar, a sociedade não prestou a devida atenção aos incontáveis méritos do rapaz e, "cidadão privado de autêntica dignidade", o rapaz acabou forçado a enveredar pelo recurso comum a tantos desprezados, leia--se a chacina. Não se trata apenas de não comprometer o islão: os actos do sr. Merah não o comprometem nem a ele próprio. Aliás, uma versão alternativa do sucedido, tipicamente disseminada pela Internet, jura que o sr. Merah pertencia aos serviços secretos franceses, os quais, a mando de Israel, o obrigaram a cometer os homicídios a título de provocação. E ainda há o pai de Merah, que pretende processar o Estado francês pela morte injustificada do filho. Há a professora francesa que submeteu os alunos a um minuto de silêncio em homenagem ao sr. Merah. Há os trinta jovens muçulmanos que, em Toulouse, desfilaram em memória do sr. Merah. Há o rapaz judeu agredido em Paris, os disparos contra um centro cultural judaico em Sarcelles e os graffiti obscenos na parede de uma sinagoga em Sartrouville, acontecimentos posteriores às proezas do sr. Merah mas banais no quotidiano francês e europeu.
E há, convém não esquecer, os principais culpados do drama: as crianças cuja morte serviu uma tentativa de conspurcar a honra do doce, oprimido e inocente homem que as matou. Felizmente, como se nota, a tentativa falhou. Millôr Fernandes, que morreu na terça-feira, tinha imensas virtudes. Lembro uma: ser de esquerda e apreciado por quem nunca o foi. É verdade que a convicção não era ortodoxa ("A direita acredita cegamente em tudo que lhe ensinaram, a esquerda acredita cegamente em tudo que ensina"). É verdade que a convicção não era tonta ("O comunismo é uma espécie de alfaiate que quando a roupa não fica boa faz alterações no cliente"). É verdade que a convicção não se estendia às unanimidades do meio como Chico Buarque ("Desconfio de todo o idealista que lucra com seu ideal") ou Lula ("A ignorância lhe subiu à cabeça"). Mas as limitações da ideologia que ridicularizava não apoucam o mérito de Millôr. E a noção do ridículo eleva-lhe a lucidez"
Alberto Gonçalves
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