domingo, dezembro 02, 2012

Jogar às cartas

"Já é mau que o Governo tenha, ao que parece deliberadamente, falhado cada uma das promessas prévias. Da garantia de que não subiria os impostos à jura de que reformaria o Estado, tudo saiu às avessas: a carga fiscal seria engraçada se não fosse trágica e o Estado, esse, continua inchado, paternal e corporativo como é hábito. Amanhado à pressa e sob pressão, o Orçamento para 2012 ainda carregava o benefício da dúvida. O Orçamento de 2013 não permite dúvidas nenhumas: os senhores que mandam nisto dedicam-se à gestão corrente e não estão para radicalismos. Os salários podem cair, os empregos podem desaparecer, a economia pode estagnar e o crescente IRS é sustentado pelos do costume, mas a coisa pública não pode sofrer uma mísera beliscadela, excepto, claro, os anúncios das beliscadelas que nunca chegam ou nada mudam.

Porém, até o socialismo mal dissimulado da coligação no poder seria quase suportável se existisse o reconhecimento geral de que a dita coligação é, na essência, socialista. O pior é que não existe. Pelo contrário, o consenso geral é o de que temos um Governo liberal. Ou "neoliberal". Ou "ultraliberal". Ou os prefixos da preferência dos ingénuos, dos maluquinhos ou dos vigaristas de serviço.

Ou dos 80 signatários de uma carta aberta de Mário Soares a pedir a demissão do Governo. Dadas as "personalidades" em causa, o tradicional bando que integra Ferro Rodrigues, Carvalho da Silva, Siza Vieira e a viúva de Saramago, não espanta a concepção peculiar de democracia que a carta revela, um regime onde esclarecidos autodesignados corrigem os resultados eleitorais que a populaça, na sua ignorância, teima em produzir. Nem espanta que o argumento das promessas quebradas implicasse, por coerência retroactiva, a ilegitimidade de todos os governos anteriores (incluindo os liderados pelo dr. Soares).

Espantoso é o conteúdo do sermão, que sem vestígio de ironia refere a "capitulação perante a lógica neo-liberal dos mercados". A sério? Engraçado. Julgava que a única capitulação evidente foi justamente a que submeteu o Governo à lógica concentracionária do Estado, e que a preservação deste a qualquer custo é o mote que inspira o dr. Passos Coelho ou aqueles que nos apascentam por seu intermédio.

O programa eleitoral do PSD exibia de facto uns palpites liberais que a prática renega violentamente, notória fraude que a extrema-esquerda a que o dr. Soares desceu invoca para justificar a interrupção do mandato. Ou a extrema-esquerda desatou a sonhar com o liberalismo ou faria melhor em festejar a fraude que, com ligeiras nuances, protela a sobrevivência do sistema que defende. Em vez disso, os senhores da carta fingem-se zangados. Zangados deveriam estar os liberais. E os cinco ou seis que cabem em Portugal andam furiosos."

Alberto Gonçalves

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