quarta-feira, março 24, 2004

Crises de pensamento

Com a devida vénia ao amigo Nuno Seara, não resisto a reproduzir o seguinte comentário:

"Cada vez mais as ideologias perdem a sua força em favor de um modelo racional que se distancia a passos largos dos grandes oradores do século passado. A interpretação errónea de conceitos como liberdade e igualdade deram origem a um discurso imberbe, bem como a numerosas batalhas eleitorais e também guerras sangrentas, resultantes da idolatria cega que caracterizou o Homem até aos tempos modernos. Existe a necessidade de acreditar em algo divino para explicar o desconhecimento, as impossibilidades da ciência, assim como para toda a comunidade tem de existir um líder que a conduza por forma a não só garantir o seu meio de subsistência mas também para incentivar ao trabalho no sentido de um objectivo comum, o do aperfeiçoamento constante visando o bem estar de todo um povo. Ao invés de efectuar uma abordagem científica, quase que heurística em termos de escolha partidária, o Homem optou pela via mais fácil, o seguidismo, limitando-se a ouvir os líderes partidários e a aceitar quase dogmaticamente o seu discurso desde que este satisfaça os seus desejos mais básicos, o que sempre aconteceu, já que qualquer político sabe quais os problemas com que se debate todo um povo e procura utilizar sempre o poder do verbo no sentido de ir ao encontro das necessidades das massas.

Porém, tínhamos ideologias que ergueram verdadeiros impérios, líderes que fizeram História durante todo um século que se por um lado foi o que mais se destacou em termos de evolução, foi sem dúvida onde ocorreram as guerras mais sangrentas, mundiais, culminando com o deflagrar da arma mais temível que o Homem concebeu para matar, a bomba atómica que hoje ameaça a sua própria existência. Se tínhamos líderes com ideais verdadeiramente enriquecedores, génios da esquerda à direita com vontade de mudar o Mundo para melhor, porque desmoronaram todas as ideologias e começamos a observar um fenómeno completamente novo caracterizado pelo absentismo eleitoral e a desconfiança generalizada na classe política ? Se nunca como hoje os conceitos de liberdade e igualdade de direitos e deveres estiveram na ordem do dia, porque é que cada vez mais sentimos que existe menos liberdade, aumentam de dia para dia o número de regras que temos de cumprir e notamos uma forte tendência de desconfiança dos cidadãos em todas as instituições, desde a religião às finanças passando também pela justiça ?

Desde o século XVIII que o Homem se começou a organizar em pequenos grupos de indivíduos de acordo com o grau de cultura e influência no meio onde se inseriam, começando por se cingir á área residencial e ao local de trabalho para mais tarde se alastrar a um círculo mais vasto de indivíduos até abranger toda a zona ou cidade onde vivia. As comunicações vieram facilitar a expansão deste tipo de sociedades que rapidamente começaram por se organizar entre si por forma a obterem alguma influência, exercendo esforços conjuntos para a realização de objectivos que não eram manuscritos mas permaneciam no seio de comunidades selectivas que os iam realizando a pouco e pouco, de acordo com as capacidades dos seus membros. Intitulando-se filantropicas, defendem o laicismo e o pluralismo como modo de vida e ambicionam alcançar aquilo que desde os tempos da alquimia se designou por gnose, constituindo uma espécie de ecletismo teosófico que é transmissível por iniciação e cuja prática se destina única e exclusivamente, pelo menos aparentemente, a ajudar a Humanidade a alcançar a Luz que foi perdida desde que o Homem foi expulso do Paraíso.

Enraizando-se em todas as áreas, desde a política à economia não esquecendo a justiça e até a própria religião, estes grupos começaram por ganhar maturidade ao angariarem elementos influentes nas áreas mais diversas exercendo as suas actividades no intuito do perfeccionismo mas sem nunca esquecer a sociedade que representavam e à qual pertenciam. Regendo-se por um secretismo absoluto, foram não só responsáveis por grandes progressos em áreas como o Direito e em acções humanitárias e educacionais como também por gigantescas convulsões e transformações na sociedade, verdadeiras revoluções quer materiais quer de mentalidades, sem que contudo algumas não deixem de ser questionáveis, já que o direito ao sufrágio deve ser sempre a primeira das opções e nenhum ser humano ou grupos de indivíduos tem o direito à pretensão de superioridade mental por forma a permitir-se iluminar as mentes de outrém de acordo com o que um grupo restrito entenda ser o caminho mais correcto, já que aquilo que para uns consiste no Conhecimento, para outros poderá ser uma clara violação dos seus direitos e princípios morais e é precisamente o respeito e o direito à opinião que classificam uma sociedade evoluída.

Por outro lado, não é de ignorar o comportamento desviante de alguns que, não obstante saberem que têm a irradiação garantida no caso de serem descobertas as suas intenções, são no entanto capazes de provocar danos irreparáveis no meio onde se conseguem encaixar enquanto o grupo de indivíduos não chega à conclusão que aquele elemento não perfilha dos mesmos ideais nem tão pouco é merecedor da confiança do clã onde se insere, já que se por um lado uma das características principais destas comunidades é serem constituídas por homens íntegros e de boa vontade, o certo é que a honestidade não é uma grandeza palpável, apenas poderá ser determinada através dos actos e estes nem sempre são perceptíveis e conclusivos.

Poder-se-à então especular sobre o verdadeiro calcanhar de Aquiles das democracias contemporâneas. Qual o impacto de um comportamento desviante oriundo de um grupo restrito no seio de um partido político, numa comunidade religiosa ou até mesmo nos meandros da justiça ? De que modo poderão influenciar o sentido dos mesmos ? Em 1998, a Grã-Bretanha debateu-se com um problema desta natureza, tendo o parlamento exigido a identificação não só dos deputados pertencentes a sociedades secretas como inclusivé os que estavam também ligados ao aparelho judicial, partindo de uma suspeita de casos de corrupção e influencias em processos judiciais. Perante isto, fazendo uso do livre arbítrio que nos é concedido por direito, não será legítimo pensar numa solução para estes problemas por forma a consolidar o pensamento democrático, passando obrigatoriamente por uma clivagem entre as sociedade secretas, a religião, a política e a justiça sem que contudo deixemos de ter em mente a importância isolada de cada uma delas e que deverão ter um objectivo comum que é o desenvolvimento da Humanidade ?

Nunca como hoje ouvimos falar tanto de "lobbies" e de uma multiplicidade de pressões aos governos por parte de sectores secundários que, se por um lado não constituem a classe política nem representam minimamente a vontade popular, por outro conseguem exercer a sua influência no seio político. Nunca como hoje vimos o Homem pôr em causa todas as instituições que ele próprio criou para delinear os trilhos que a sociedade deverá percorrer no sentido do progresso. Nunca como hoje deparamos com tanta gente incrédula que ao contemplar a crise de valores que grassa pelo país se interroga quanto ao porquê de tanta decadência sem que para tal exista uma razão aparente. Afinal, da esquerda à direita as intenções até são boas, os objectivos principais, na sua essência, convergem todos para um mesmo sentido, apesar da diferente fraseologia empregue e a imagem dos diferentes líderes partidários continua a pautar-se pela excelência. O que provoca então o desmoronar de todos os valores, o que faz com que toda uma sociedade viva por viver e tenha deixado de acreditar nos seus próprios ideais ? Não estará na altura de se fazer uma reengenharia ao pensamento político e purgá-lo de todos os seus excedentes ? Penso que a maior dificuldade que o Homem moderno poderá enfrentar será superar-se a si próprio no sentido de encontrar erros onde estes nunca se colocaram, estabelecer uma analogia entre o pensamento científico e o político por forma a poder excluir todas as variáveis supérfluas para que a engrenagem a que chamamos desenvolvimento não seja travada por nenhuma circunstância alheia aos interesses da maioria. "

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