Ser e parecer
"Vemos o Sol andar à volta da Terra, vemos a paisagem deslizar para trás de nós quando viajamos de comboio... Muitos outros exemplos poderiam ser citados para ilustrar as falsas interpretações da realidade a que a acrítica confiança nos sentidos nos pode conduzir. Mas, apesar disso, é-nos geralmente difícil duvidar das evidências sensoriais, sobretudo quando sabemos que, na grande maioria dos casos, essas evidências conduzem directamente a interpretações verdadeiras da realidade. Um confronto entre as fontes alternativas de conhecimento da verdade é bem ilustrado pela conhecida história, contada em várias versões (algumas delas com nomes atribuídos), e que corre assim. Alguém, confrontado pelo cônjuge com um flagrante acto de infidelidade, nega a evidência invocada e remata a troca de argumentos com a pergunta “filosófica”: “mas em que é que tu acreditas mais, naquilo que os teus olhos vêem, ou naquilo que eu te digo?”
Vem isto a propósito da perplexidade, que tem vindo a ser apontada por muitos observadores, suscitada pela aparente contradição entre a realidade económica e social que observamos no dia a dia à nossa volta e a que nos é sugerida pela análise das estatísticas e das notícias especializadas. De facto, esta análise indica-nos que vivemos uma crise. Mais latente do que profunda, é certo, mas uma crise, de qualquer forma. A economia cresce a um ritmo medíocre, muito abaixo do seu potencial, e tem vindo a perder competitividade sucessivamente; temos elevados défices nas contas com o exterior e nas finanças públicas; os indicadores de confiança e os inquéritos sobre a satisfação dos portugueses com a sua vida dão resultados baixos e domina um persistente pessimismo à nossa volta.
No entanto, observando a realidade, não se vêem sinais de crise, pelo menos como nos habituáramos a ver em crises passadas. O parque automóvel renova-se a um ritmo rápido e com crescente participação dos carros de gama alta, os restaurantes estão cheios, as estradas estão cheias, os destinos de férias estão cheios. Ou seja, os sinais da evidência empírica sugerem uma abundância que contradiz os sinais de crise sugeridos pela análise económica. Onde estará, pois, a verdade, ou, por outras palavras, como explicar a diferença entre as “verdades” sugeridas pelas duas vias de conhecimento?
Não tendo pretensões de conhecer “a” explicação necessária, posso alvitrar três possibilidades que, talvez no seu conjunto, expliquem a diferença. Por um lado, a evidência recolhida é uma imagem enviesada da realidade, na medida em que, com a moeda única, a economia nacional se tornou menos “solidária” entre si, passando a conviver mais facilmente segmentos sociais em crise com segmentos prósperos. Nesse caso, as imagens de prosperidade resultam do segmento que se mantém próspero (o directamente visível), enquanto o segmento social mais afectado pela crise tem menos visibilidade pública.
Por outro lado, o continuado desequilíbrio externo, mostra que a sociedade tem vindo a financiar, com empréstimos externos, um nível de vida acima das suas possibilidades. Neste caso, os efeitos sociais da crise económica têm vindo a ser disfarçados (e adiados) com o endividamento externo.
Por fim, a economia paralela terá, provavelmente, vindo a ganhar peso, pelo que a situação percebida através das estatísticas oficiais sobrevaloriza a crise e a economia (e a sociedade) como um todo estará em melhores condições do que é sugerido por aqueles dados. Para além de alguns sinais recolhidos aqui e ali, mas sem um conhecimento fundamentado da sua representatividade, não existe informação segura que permita validar esta possível explicação. Mas quando se pagam contas de restaurante com notas de 500 euros, dispondo Portugal de um sofisticado sistema de pagamentos automáticos, dá para desconfiar."
Vítor Bento
Vem isto a propósito da perplexidade, que tem vindo a ser apontada por muitos observadores, suscitada pela aparente contradição entre a realidade económica e social que observamos no dia a dia à nossa volta e a que nos é sugerida pela análise das estatísticas e das notícias especializadas. De facto, esta análise indica-nos que vivemos uma crise. Mais latente do que profunda, é certo, mas uma crise, de qualquer forma. A economia cresce a um ritmo medíocre, muito abaixo do seu potencial, e tem vindo a perder competitividade sucessivamente; temos elevados défices nas contas com o exterior e nas finanças públicas; os indicadores de confiança e os inquéritos sobre a satisfação dos portugueses com a sua vida dão resultados baixos e domina um persistente pessimismo à nossa volta.
No entanto, observando a realidade, não se vêem sinais de crise, pelo menos como nos habituáramos a ver em crises passadas. O parque automóvel renova-se a um ritmo rápido e com crescente participação dos carros de gama alta, os restaurantes estão cheios, as estradas estão cheias, os destinos de férias estão cheios. Ou seja, os sinais da evidência empírica sugerem uma abundância que contradiz os sinais de crise sugeridos pela análise económica. Onde estará, pois, a verdade, ou, por outras palavras, como explicar a diferença entre as “verdades” sugeridas pelas duas vias de conhecimento?
Não tendo pretensões de conhecer “a” explicação necessária, posso alvitrar três possibilidades que, talvez no seu conjunto, expliquem a diferença. Por um lado, a evidência recolhida é uma imagem enviesada da realidade, na medida em que, com a moeda única, a economia nacional se tornou menos “solidária” entre si, passando a conviver mais facilmente segmentos sociais em crise com segmentos prósperos. Nesse caso, as imagens de prosperidade resultam do segmento que se mantém próspero (o directamente visível), enquanto o segmento social mais afectado pela crise tem menos visibilidade pública.
Por outro lado, o continuado desequilíbrio externo, mostra que a sociedade tem vindo a financiar, com empréstimos externos, um nível de vida acima das suas possibilidades. Neste caso, os efeitos sociais da crise económica têm vindo a ser disfarçados (e adiados) com o endividamento externo.
Por fim, a economia paralela terá, provavelmente, vindo a ganhar peso, pelo que a situação percebida através das estatísticas oficiais sobrevaloriza a crise e a economia (e a sociedade) como um todo estará em melhores condições do que é sugerido por aqueles dados. Para além de alguns sinais recolhidos aqui e ali, mas sem um conhecimento fundamentado da sua representatividade, não existe informação segura que permita validar esta possível explicação. Mas quando se pagam contas de restaurante com notas de 500 euros, dispondo Portugal de um sofisticado sistema de pagamentos automáticos, dá para desconfiar."
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