domingo, dezembro 02, 2007

2 de Dezembro de 1814.

O Marquês de Sade morre no hospício de Charenton.

O mais adorável dos blasfemadores pede uma leitura atenta. Não basta apenas abrirmos o volume e deixarmos os olhos deslizarem pelas linhas em um movimento inconseqüente. Ao contrário, os textos do marquês de Sade solicitam de nós um educado esforço de atenção, quiçá um gesto de cortesia em relação a quem passou a vida provocando escândalos e entrando e saindo das prisões; após a Revolução Francesa livrou-se, no último instante, da guilhotina, apesar de ser acusado do crime de "moderação"; e terminou seus dias – entre 1801 e 1824 – detido por ser autor de obras pornográficas, mas perseverando em escrever.

Um incompreendido até hoje, certamente, esse nobre francês, arauto de um ateísmo insultuoso, partidário de uma nova e revolucionária moral, pautada pela lascívia, e defensor irrepreensível da natureza, pois, para o marquês, as paixões são apenas "os meios que a natureza emprega para fazer o homem atingir as metas que traçou para ele" (1); e "só estendendo a esfera de seus gostos e de suas fantasias, só sacrificando tudo à volúpia, o infeliz indivíduo denominado homem e jogado a contragosto neste universo conseguirá semear algumas rosas sobre os espinhos da vida" (2).

Em Diálogo entre um padre e um moribundo (3) encontramos deliciosas amostras desse pensamento cuja melhor característica é o confronto desbragado. Organizado por Augusto Contador Borges, o volume reúne textos sobre religião, tendo por base a edição francesa de Gilbert Lely, mas extrapola o assunto, dedicando-se a outros temas, definidos por Borges como o "manancial furioso da verve sadiana". Caluniar Deus é, de fato, um começo perfeito para qualquer coletânea de Sade. E o mínimo que o bom marquês faz é chamá-Lo de "execrável aborto" e "nojenta quimera".

No texto que dá título ao livro, encontramos um dos melhores resumos do pensamento sadiano. Dirigindo-se ao padre que insiste em sua conversão, o moribundo declara: "– Meu amigo, conforma-te com a evidência de que cego é quem se veda com uma fita, não quem a arranca dos olhos. Tu edificas, inventas, multiplicas; eu destruo, simplifico. Tu acumulas erros sobre erros; eu combato todos. Qual de nós é o cego?" E afirma, ao ser questionado se não acredita mesmo em Deus: "- Só me rendo à evidência que recebo dos sentidos; onde eles cessam, minha fé desfalece." Uma lei básica, tão singela que é impossível não refletirmos como tal verdade tenha nos escapado, emerge da leitura: "- Não há uma só virtude que não seja necessária à natureza e, da mesma forma, um só crime de que ela não tenha necessidade." Ao final, o moribundo se despede do padre avisando-o que, na sala ao lado, seis mulheres aguardam sua saída, reservadas para os últimos prazeres antes do fim. O padre fica, é claro, aceitando o convite do moribundo para esquecer nos seios delas "os sofismas inúteis da superstição e os erros imbecis da hipocrisia".

Para Sade, "antigos preconceitos predispuseram o homem contra sua própria natureza" e ele "quer ser o que não é". Para abandonar seus erros e conhecer a verdade deve, portanto, aferrar-se ao seu próprio corpo e esquecer o absurdo sistema que defende a existência da alma, pois "é apenas e unicamente por meio de nossos sentidos que os seres se tornam conhecidos de nós ou produzem idéias em nós". Nada há além de nossos corpos. Qualquer outra suposta realidade metafísica é fruto da "política", do "terror" e da "ignorância".

Em "Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos", depois de demonstrar a inutilidade da religião e de qualquer forma de teísmo, ele propugna uma revolução nos costumes. O homem deve se sentir livre para satisfazer o apelo de suas pulsões sexuais, a fim de que elas não se voltem, transmutadas em despotismo, sobre a sociedade. O Estado precisa, portanto, garantir a realização de todas as fantasias da libido, criando nas cidades "locais variados, saudáveis, vastos, adequadamente mobiliados e seguros em todos os aspectos", onde "todos os sexos, todas as idades, todas as criaturas se oferecerão aos caprichos dos libertinos". Ele defende a criação de casas semelhantes "à libertinagem das mulheres", nas quais "serão fornecidos todos os indivíduos de um sexo e de outro que elas possam desejar". O marquês também advoga em favor do incesto, já que "ele estende os laços de família e, em conseqüência, torna mais ativo o amor dos cidadãos pela pátria". Uma nova sociedade nascerá somente quando todos entenderem que "o que há de verdadeiramente criminoso é só aquilo que a lei reprova".

O mais prazeroso dos textos, no entanto, é o que fecha o volume. Os estatutos da "Sociedade dos amigos do crime" conformam a sistematização das teorias sadianas, transformadas aqui em regras claras e praticáveis para uma comunidade que congrega escolhidos e onde o único deus conhecido "é o prazer", pelo qual "se sacrifica tudo". Uma sociedade visceralmente democrática, pois, nela, "jamais uma recusa pode subtrair um indivíduo aos prazeres do outro" e "o que for escolhido deve se prestar a fazer tudo o que lhe for solicitado: não terá ele o mesmo direito no momento seguinte?". O amor não é aceito entre seus membros, pois "os ciúmes, as querelas, as cenas ou propostas de amor são absolutamente proibidos", já que prejudicariam o ideal de libertinagem. Uma libertinagem, aliás, com limites, que restringe as práticas sadomasoquistas – ou as "paixões ferozes" – a haréns especialmente montados para seus adeptos. Das violências, apenas "o açoite aplicado nas nádegas" é livremente aceito entre todos os membros. Em seus 45 artigos, o estatuto é claro: tudo o que pode ser definido como "sujeira da luxúria" encontrará abrigo e "reinará imperioso" nessa assembléia.

Sob a variegada produção de Sade, o leitor encontrará, no entanto, a preocupação de um sincero higienista devotado à causa da saúde pública. Não é por outra razão que, ao final da dedicatória de um outro livro – A filosofia na alcova – ele insiste, paternal, que a mãe deve prescrever a leitura de sua obra à filha.

As raízes do pensamento de Donatien-Alphonse-François, o marquês de Sade, são, na verdade, mais elementares do que se imagina – ainda que, infelizmente, escandalizem os marcados, desde cedo, pela herança cruel da civilização judaico-cristã. Para ele, a voz de nossas paixões é a única verdade que pode nos tornar felizes.

Notas:

(1) In A filosofia na alcova, editora Iluminuras, SP, 1999.

(2) Idem.

(3) Editora Iluminuras, SP, 2001.

Rodrigo Gurgel

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Era um tarado.

domingo, dezembro 05, 2004  
Anonymous Anónimo said...

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quarta-feira, abril 25, 2007  

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