Era só o que faltava
"O aborto foi despenalizado e Portugal alcançou enfim a civilização. Os valentes activistas do ‘sim’ enxugam as lágrimas. De facto, vivemos um momento histórico. Correcção: o momento histórico. Eu reparei mal saí de casa, na segunda-feira de manhã. O ar parecia mais puro. A caminho dos empregos, os funcionários saudavam-se com sorrisos. Alguns abraçavam desconhecidos e choravam. Os desconhecidos choravam também. Havia passarinhos a chilrear e automóveis, muito lavados, que resplandeciam ao Sol. E, embora não houvesse Sol, o brilho dos olhares felizes chegava e sobrava para iluminar o pavimento das ruas, os jardins, as casas com janelas escancaradas para a Nova Era que amanhecia. E eu vivo no Norte. Imagino a felicidade a Sul.
Pois é, o aborto foi despenalizado e Portugal alcançou enfim a civilização. Os valentes activistas do ‘sim’, comovidos, enxugam as lágrimas e explicam aos incrédulos que terminou o obscurantismo, que saltámos da longa noite de trevas para a modernidade. E não explicam com pormenores porque andam ocupados a prestar ajuda humanitária às inúmeras mulheres detidas por aborto clandestino e entretanto libertadas. Hoje, livres somos todos: entrámos no século XXI e, como se viu na noite do referendo, foi Francisco Louçã quem nos recebeu.
Curioso. O Portugal (até Domingo passado teoricamente) democrático demorou três décadas a debater e a investigar as razões do seu atávico atraso. E demorou as mesmas três a descobri-las. Afinal, o ingresso na Europa dita dos ricos não exigia formação, salários baixos, salários altos, controlo do défice, poupança, consumo, investimento estrangeiro, confiança, auto-estima, etc. Afinal, bastava liberalizar / despenalizar / estatizar a ‘interrupção’ da gravidez. Logo que dois milhões e tal de cidadãos esclarecidos desenharam uma cruz (laica) no boletim de voto, despedimo-nos da ingerência eclesiástica, do ruralismo salazarista e de outras calamidades que não me ocorrem mas que certamente nos tolhiam e impediam de cumprir um prodigioso destino.
Francamente: a solução era tão simples e demorámos tanto a dar com ela. Parecemos parvos. Éramos parvos. Não mais. Agora somos modernos, conscientes, progressistas, urbanos. Somos, insisto, verdadeiros europeus. Aliás, os maiores europeus. A Finlândia que se cuide. A Espanha que se encolha. E a Irlanda, a retrógrada e beata Irlanda, que desista: o futuro é português. Se prestarem atenção, talvez já se sinta o PIB a crescer, a Saúde a melhorar, a Justiça a acertar, as escolas a ensinar. Não? Tentem de novo. Não? Espera-se um bocadinho. Ainda nada? É questão de tempo. Tem de ser. Entre nós e a prosperidade, o aborto era só o que faltava.
Ao contrário do que um juiz garantiu num programa televisivo, os 480 euros de custas judiciais serão divididos pelos dez mil subscritores do pedido de libertação (rejeitado) do sr. Luís Gomes. É pena que cada requerente não seja forçado a pagar aquela quantia. Por um lado, dez milhões de portugueses aprenderiam que não se assina todo o papel que nos estendem. Por outro, dez mil portugueses teriam oportunidade de repetir o seu exercício preferido, assinando então um cheque de 96 contos. Assim, a história acaba sem lição nem moral, mas apenas com uma moedita de cinco cêntimos. Fora trocos. "
Alberto Gonçalves
Pois é, o aborto foi despenalizado e Portugal alcançou enfim a civilização. Os valentes activistas do ‘sim’, comovidos, enxugam as lágrimas e explicam aos incrédulos que terminou o obscurantismo, que saltámos da longa noite de trevas para a modernidade. E não explicam com pormenores porque andam ocupados a prestar ajuda humanitária às inúmeras mulheres detidas por aborto clandestino e entretanto libertadas. Hoje, livres somos todos: entrámos no século XXI e, como se viu na noite do referendo, foi Francisco Louçã quem nos recebeu.
Curioso. O Portugal (até Domingo passado teoricamente) democrático demorou três décadas a debater e a investigar as razões do seu atávico atraso. E demorou as mesmas três a descobri-las. Afinal, o ingresso na Europa dita dos ricos não exigia formação, salários baixos, salários altos, controlo do défice, poupança, consumo, investimento estrangeiro, confiança, auto-estima, etc. Afinal, bastava liberalizar / despenalizar / estatizar a ‘interrupção’ da gravidez. Logo que dois milhões e tal de cidadãos esclarecidos desenharam uma cruz (laica) no boletim de voto, despedimo-nos da ingerência eclesiástica, do ruralismo salazarista e de outras calamidades que não me ocorrem mas que certamente nos tolhiam e impediam de cumprir um prodigioso destino.
Francamente: a solução era tão simples e demorámos tanto a dar com ela. Parecemos parvos. Éramos parvos. Não mais. Agora somos modernos, conscientes, progressistas, urbanos. Somos, insisto, verdadeiros europeus. Aliás, os maiores europeus. A Finlândia que se cuide. A Espanha que se encolha. E a Irlanda, a retrógrada e beata Irlanda, que desista: o futuro é português. Se prestarem atenção, talvez já se sinta o PIB a crescer, a Saúde a melhorar, a Justiça a acertar, as escolas a ensinar. Não? Tentem de novo. Não? Espera-se um bocadinho. Ainda nada? É questão de tempo. Tem de ser. Entre nós e a prosperidade, o aborto era só o que faltava.
Ao contrário do que um juiz garantiu num programa televisivo, os 480 euros de custas judiciais serão divididos pelos dez mil subscritores do pedido de libertação (rejeitado) do sr. Luís Gomes. É pena que cada requerente não seja forçado a pagar aquela quantia. Por um lado, dez milhões de portugueses aprenderiam que não se assina todo o papel que nos estendem. Por outro, dez mil portugueses teriam oportunidade de repetir o seu exercício preferido, assinando então um cheque de 96 contos. Assim, a história acaba sem lição nem moral, mas apenas com uma moedita de cinco cêntimos. Fora trocos. "
Alberto Gonçalves
2 Comments:
Será que daqui a 9 anos posso votar oputra vez?
Já não. A democracia do politicamente correcto só tem um lado.
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