CRIME DELE, NOSSO CASTIGO
"Começou o julgamento de António Costa (não é esse), o alegado homicida de Santa Comba Dão (não é esse). O sr. Costa é um antigo cabo da GNR e, apesar do barulho em seu redor, não faço ideia se está inocente. Se está, o caso é uma vergonha. Se não está, o caso é uma vergonha maior.
A excitação e a pressa levaram a imprensa a chamar o sr. Costa de "serial-killer". À portuguesa, faltou especificar. Um assassino em série competente não nega crimes em tribunal: confessa os que cometeu, junta-lhes alguns que não cometeu (para compor o currículo), enriquece-os com pormenores macabros e a seguir sorri à plateia, consolado e doido. Medroso, o típico assassino nacional admite em privado, para em público se encolher, negar tudo e desatar a distribuir lamúrias.
À imagem do verificado em tantos ramos de actividade, também no assassínio em série não conseguimos alcançar os níveis dos países desenvolvidos. Concedo, não é exactamente uma razão de queixa: a vida real passa bem sem um certo tipo de matanças indiscriminadas. O chato é que a vida ficcional não. Um destes dias, a propósito do sr. Costa, Ferreira Fernandes lembrou aqui no DN que Portugal não possui uma literatura policial. Concordo e acrescento: nem literatura, nem cinema, nem nenhuma forma de expressão artística que se tente alimentar, com proveito, do vital tema do crime.
Quer dizer, criminosos nós temos. Mas são, quase invariavelmente, ex-polícias, camponeses alcoolizados, débeis mentais e vítimas do rendimento mínimo. Por sua vez, o móbil dos crimes prende-se normalmente com terras, águas, ciúmes, drogas, frustração sexual e outros elementos telúricos que não dão enredo ou, o que é pior, dão enredos péssimos. A acreditar nas escutas ao arguido, o sr. Costa matou três raparigas porque "queria um beijo" e "andava stressado". Pois é, nascer, e morrer, em Famalicão ou Telheiras não é o mesmo que nascer, e morrer, em Cleveland ou São Petersburgo. Psicopatas autênticos suscitam análises e parábolas sobre o mistério da condição humana. Os nossos retratam a pobreza de espírito: perante a prisão iminente, o maior desgosto do sr. Costa consiste em não regressar à Casa do Benfica.
Com personagens e tramas destas, a ficção pátria vem-se arrastando-se dos folhetins de cordel ao neo-realismo e ao cinema contemporâneo por entre vinganças, invejas, violadores de bairro, familiares desavindos, toxicodependentes confusos e a miséria literal e criativa. Em suma, um aborrecimento de morte. Embora haja relativa perícia em tornar, como os portugueses tornam, a morte aborrecida.
António Costa percebeu que não ganha Lisboa com a folga desejada sem fingir questionar, ao menos um bocadinho muito pequenino, o aeroporto da Ota. Mas uma coisa é simular objecções a um projecto duvidoso, assente em argumentos anedóticos e num lamaçal. Outra coisa é julgar que a defesa de um retrocesso geral no sistema de transportes constitui um bom mote para a campanha. Quando António Costa aparece a pedalar por Belém e a prometer rasgar a cidade com "ciclovias", é chegada a altura de os seus assessores lhe aconselharem moderação.
Primeiro, há o problema da coerência política: ninguém acredita que o antigo "número dois" do exacto Governo que quer cercar a capital com terminais aéreos e linhas de TGV seja um adepto indefectível do ciclismo. Depois, há o problema do interesse comum: ninguém aspira a trocar o automóvel pela bicicleta na sua rotina diária.
Vale ao dr. Costa que os demais candidatos também partilham a aparente obsessão por sujeitar as massas a meios de locomoção arcaicos e cansativos. Ler as diversas propostas eleitorais é antecipar uma intrincada teia de ruas fechadas ao trânsito, "corredores verdes", "passadiços", "eixos pedonais", "faixas cicláveis" (?), etc. A aversão dos putativos autarcas lisboetas aos transportes comuns terá começado no momento em que Marcelo Rebelo de Sousa se lançou ao Tejo, numa subtil tentativa de demonstrar a inutilidade de carros e cacilheiros.
Mas nem o presciente prof. Marcelo adivinharia o fervor ruralista e ecológico que hoje domina a corrida à CML. Além de procurarem regular o tráfego urbano pelos padrões de 1935, os concorrentes sonham com colectividades de bairro, mercearias de esquina, teatro nas ruas, heranças árabes, "pulmões" florestais, "agricultura urbana" e, eu fique ceguinho, o combate municipal ao aquecimento global. Um terço das propostas de governação camarária resume-se a este Manifesto do Atraso de Vida, assumidamente "giro" e naturalmente inviável. Os restantes dois terços são banalidades, que oscilam entre a "devolução de Lisboa" aos lisboetas ou ao rio.
Sugiro um compromisso: devolva-se de facto Lisboa (ou o matagal que dela sobrar) ao rio e, já que a finalidade é convertê-los à força aos ideais da Quercus, mude-se os lisboetas para a Albânia, o Nepal ou qualquer lugar assim "pedonal", "ciclável" e rústico. Não fosse o aeroporto e a Ota seria uma solução igualmente válida."
Alberto Gonçalves
A excitação e a pressa levaram a imprensa a chamar o sr. Costa de "serial-killer". À portuguesa, faltou especificar. Um assassino em série competente não nega crimes em tribunal: confessa os que cometeu, junta-lhes alguns que não cometeu (para compor o currículo), enriquece-os com pormenores macabros e a seguir sorri à plateia, consolado e doido. Medroso, o típico assassino nacional admite em privado, para em público se encolher, negar tudo e desatar a distribuir lamúrias.
À imagem do verificado em tantos ramos de actividade, também no assassínio em série não conseguimos alcançar os níveis dos países desenvolvidos. Concedo, não é exactamente uma razão de queixa: a vida real passa bem sem um certo tipo de matanças indiscriminadas. O chato é que a vida ficcional não. Um destes dias, a propósito do sr. Costa, Ferreira Fernandes lembrou aqui no DN que Portugal não possui uma literatura policial. Concordo e acrescento: nem literatura, nem cinema, nem nenhuma forma de expressão artística que se tente alimentar, com proveito, do vital tema do crime.
Quer dizer, criminosos nós temos. Mas são, quase invariavelmente, ex-polícias, camponeses alcoolizados, débeis mentais e vítimas do rendimento mínimo. Por sua vez, o móbil dos crimes prende-se normalmente com terras, águas, ciúmes, drogas, frustração sexual e outros elementos telúricos que não dão enredo ou, o que é pior, dão enredos péssimos. A acreditar nas escutas ao arguido, o sr. Costa matou três raparigas porque "queria um beijo" e "andava stressado". Pois é, nascer, e morrer, em Famalicão ou Telheiras não é o mesmo que nascer, e morrer, em Cleveland ou São Petersburgo. Psicopatas autênticos suscitam análises e parábolas sobre o mistério da condição humana. Os nossos retratam a pobreza de espírito: perante a prisão iminente, o maior desgosto do sr. Costa consiste em não regressar à Casa do Benfica.
Com personagens e tramas destas, a ficção pátria vem-se arrastando-se dos folhetins de cordel ao neo-realismo e ao cinema contemporâneo por entre vinganças, invejas, violadores de bairro, familiares desavindos, toxicodependentes confusos e a miséria literal e criativa. Em suma, um aborrecimento de morte. Embora haja relativa perícia em tornar, como os portugueses tornam, a morte aborrecida.
António Costa percebeu que não ganha Lisboa com a folga desejada sem fingir questionar, ao menos um bocadinho muito pequenino, o aeroporto da Ota. Mas uma coisa é simular objecções a um projecto duvidoso, assente em argumentos anedóticos e num lamaçal. Outra coisa é julgar que a defesa de um retrocesso geral no sistema de transportes constitui um bom mote para a campanha. Quando António Costa aparece a pedalar por Belém e a prometer rasgar a cidade com "ciclovias", é chegada a altura de os seus assessores lhe aconselharem moderação.
Primeiro, há o problema da coerência política: ninguém acredita que o antigo "número dois" do exacto Governo que quer cercar a capital com terminais aéreos e linhas de TGV seja um adepto indefectível do ciclismo. Depois, há o problema do interesse comum: ninguém aspira a trocar o automóvel pela bicicleta na sua rotina diária.
Vale ao dr. Costa que os demais candidatos também partilham a aparente obsessão por sujeitar as massas a meios de locomoção arcaicos e cansativos. Ler as diversas propostas eleitorais é antecipar uma intrincada teia de ruas fechadas ao trânsito, "corredores verdes", "passadiços", "eixos pedonais", "faixas cicláveis" (?), etc. A aversão dos putativos autarcas lisboetas aos transportes comuns terá começado no momento em que Marcelo Rebelo de Sousa se lançou ao Tejo, numa subtil tentativa de demonstrar a inutilidade de carros e cacilheiros.
Mas nem o presciente prof. Marcelo adivinharia o fervor ruralista e ecológico que hoje domina a corrida à CML. Além de procurarem regular o tráfego urbano pelos padrões de 1935, os concorrentes sonham com colectividades de bairro, mercearias de esquina, teatro nas ruas, heranças árabes, "pulmões" florestais, "agricultura urbana" e, eu fique ceguinho, o combate municipal ao aquecimento global. Um terço das propostas de governação camarária resume-se a este Manifesto do Atraso de Vida, assumidamente "giro" e naturalmente inviável. Os restantes dois terços são banalidades, que oscilam entre a "devolução de Lisboa" aos lisboetas ou ao rio.
Sugiro um compromisso: devolva-se de facto Lisboa (ou o matagal que dela sobrar) ao rio e, já que a finalidade é convertê-los à força aos ideais da Quercus, mude-se os lisboetas para a Albânia, o Nepal ou qualquer lugar assim "pedonal", "ciclável" e rústico. Não fosse o aeroporto e a Ota seria uma solução igualmente válida."
Alberto Gonçalves
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