Palavras e conceitos
"Je pardonne aux gens de n’être pas de mon avis, je ne leur pardonne pas de n’être pas du leur.
Talleyrand (1754-1838)
Foi Talleyrand – o político francês que passou incólume do Antigo Regime à Revolução, ao Império e à Restauração – que disse que a palavra foi dada ao homem para ocultar o pensamento. Ao assistir aos vários debates que decorrem entre nós, essa frase vem irresistivelmente à mente, embora nestes casos não haja sequer a desculpa de tal dom ser usado para permitir a acção em tempos de grande turbulência política, servindo antes para confundir as ideias por forma a impedir a acção.
Exemplos que ilustram este enunciado foram os comentários à flexisegurança, na sequência da conferência de Poul Rasmussen, o ex-primeiro ministro dinamarquês que introduziu a prática no seu país, e às declarações de Saldanha Sanches, especificamente pelo seu uso do conceito de “captura do Estado”.
Esta expressão divulgou-se nos anos 90 com respeito à regulação da economia, em especial nos países da ex-União Soviética, onde processos de privatização acelerada associados a uma grande fraqueza do Estado conduziram à captura das instituições por interesses organizados. A característica fundamental do processo consiste em influenciar a formulação e funcionamento das instituições de modo a garantir a legalidade de procedimentos que aproveitam aos grupos de interesses que a promovem, ainda que em prejuízo evidente da sociedade em que se inserem. Trata-se, por assim dizer, de uma forma superior de corrupção, que põe os seus agentes ao abrigo das penalizações destinadas a eliminar esta. A sua existência está, por definição, associada à fraqueza do Estado e à má qualidade das instituições. Estes eram os aspectos que Saldanha Sanches criticava e são eles que precisam de ser debatidos, em lugar das intrigas e insídias que, em vez de eliminar, agravam a corrupção e a captura das instituições. A inanidade do debate a que assistimos é, aliás, mais uma forma de as reforçar.
Quanto à flexisegurança, embora o termo seja mais novo, já passou a fazer parte do léxico corrente. Isso não significa, porém, que o conceito seja claro e a tentativa de o destruir assenta em deformá-lo. Para isso começa por reduzir-se-lhe o âmbito, limitando-o à liberalização dos despedimentos, que existe na Dinamarca, mas não tem qualquer relevância na Holanda, o outro paradigma da flexisegurança. Mais importante, porém, é o facto de esses dois países deterem as mais baixas taxas de desemprego na Europa (3,3% na Holanda e 3,4% na Dinamarca), um argumento que ainda não vi referir no “debate” nacional.
A outra característica que este não se cansa de sublinhar é a generosidade do subsídio de desemprego associada ao conceito e que Portugal não poderia suportar por razões orçamentais. Esquece-se, porém, que se reduzíssemos o desemprego em 60%, para os níveis daqueles países, poderíamos sem maior encargo orçamental, assumir um subsídio mais elevado. O que, porém, mais importa não é o nível do subsídio, mas o apoio ao trabalhador que perde o seu posto de trabalho, com vista a reduzir ao mínimo a situação de desempregado e a proporcionar-lhe melhores condições de empregabilidade, ao mesmo tempo que, para assegurar estas, é indispensável garantir formação e flexibilidade nas relações laborais, em particular em matéria de horários. Os sindicatos que se opõem à mudança estão a obedecer a regras que os levam a preferir defender os insiders e a reduzir à retórica política a defesa do emprego, esquecendo que este se promove pela flexibilidade na criação de novos postos de trabalho e não pela defesa dos que perderam a viabilidade económica, ou de políticas insustentáveis no enquadramento em que o país se situa.
O último argumento contra a flexisegurança é o cultural: os dinamarqueses são mais educados e têm um espírito cívico mais desenvolvido; além disso, a frieza nórdica não seria aplicável aos países mediterrânicos. Quanto a esta, seria melhor usarmos antes uma perspectiva de racionalidade e não consta que os mediterrânicos sejam mais estúpidos que os nórdicos. Quanto à educação e ao espírito cívico, é precisamente para os desenvolver que temos de mudar de hábitos. Dar seriedade aos debates seria um bom começo."
Teodora Cardoso
Talleyrand (1754-1838)
Foi Talleyrand – o político francês que passou incólume do Antigo Regime à Revolução, ao Império e à Restauração – que disse que a palavra foi dada ao homem para ocultar o pensamento. Ao assistir aos vários debates que decorrem entre nós, essa frase vem irresistivelmente à mente, embora nestes casos não haja sequer a desculpa de tal dom ser usado para permitir a acção em tempos de grande turbulência política, servindo antes para confundir as ideias por forma a impedir a acção.
Exemplos que ilustram este enunciado foram os comentários à flexisegurança, na sequência da conferência de Poul Rasmussen, o ex-primeiro ministro dinamarquês que introduziu a prática no seu país, e às declarações de Saldanha Sanches, especificamente pelo seu uso do conceito de “captura do Estado”.
Esta expressão divulgou-se nos anos 90 com respeito à regulação da economia, em especial nos países da ex-União Soviética, onde processos de privatização acelerada associados a uma grande fraqueza do Estado conduziram à captura das instituições por interesses organizados. A característica fundamental do processo consiste em influenciar a formulação e funcionamento das instituições de modo a garantir a legalidade de procedimentos que aproveitam aos grupos de interesses que a promovem, ainda que em prejuízo evidente da sociedade em que se inserem. Trata-se, por assim dizer, de uma forma superior de corrupção, que põe os seus agentes ao abrigo das penalizações destinadas a eliminar esta. A sua existência está, por definição, associada à fraqueza do Estado e à má qualidade das instituições. Estes eram os aspectos que Saldanha Sanches criticava e são eles que precisam de ser debatidos, em lugar das intrigas e insídias que, em vez de eliminar, agravam a corrupção e a captura das instituições. A inanidade do debate a que assistimos é, aliás, mais uma forma de as reforçar.
Quanto à flexisegurança, embora o termo seja mais novo, já passou a fazer parte do léxico corrente. Isso não significa, porém, que o conceito seja claro e a tentativa de o destruir assenta em deformá-lo. Para isso começa por reduzir-se-lhe o âmbito, limitando-o à liberalização dos despedimentos, que existe na Dinamarca, mas não tem qualquer relevância na Holanda, o outro paradigma da flexisegurança. Mais importante, porém, é o facto de esses dois países deterem as mais baixas taxas de desemprego na Europa (3,3% na Holanda e 3,4% na Dinamarca), um argumento que ainda não vi referir no “debate” nacional.
A outra característica que este não se cansa de sublinhar é a generosidade do subsídio de desemprego associada ao conceito e que Portugal não poderia suportar por razões orçamentais. Esquece-se, porém, que se reduzíssemos o desemprego em 60%, para os níveis daqueles países, poderíamos sem maior encargo orçamental, assumir um subsídio mais elevado. O que, porém, mais importa não é o nível do subsídio, mas o apoio ao trabalhador que perde o seu posto de trabalho, com vista a reduzir ao mínimo a situação de desempregado e a proporcionar-lhe melhores condições de empregabilidade, ao mesmo tempo que, para assegurar estas, é indispensável garantir formação e flexibilidade nas relações laborais, em particular em matéria de horários. Os sindicatos que se opõem à mudança estão a obedecer a regras que os levam a preferir defender os insiders e a reduzir à retórica política a defesa do emprego, esquecendo que este se promove pela flexibilidade na criação de novos postos de trabalho e não pela defesa dos que perderam a viabilidade económica, ou de políticas insustentáveis no enquadramento em que o país se situa.
O último argumento contra a flexisegurança é o cultural: os dinamarqueses são mais educados e têm um espírito cívico mais desenvolvido; além disso, a frieza nórdica não seria aplicável aos países mediterrânicos. Quanto a esta, seria melhor usarmos antes uma perspectiva de racionalidade e não consta que os mediterrânicos sejam mais estúpidos que os nórdicos. Quanto à educação e ao espírito cívico, é precisamente para os desenvolver que temos de mudar de hábitos. Dar seriedade aos debates seria um bom começo."
Teodora Cardoso
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