Os criminosos.
"Mudar as leis aos sabor dos dias é um hábito bem português. Quando se legisla, projecta-se a sensação de movimento, modernidade, progresso. Em três palavrinhas: sabe muito bem. Dá a sensação de poder a quem decide e é um exercício que não custa (directamente) dinheiro ao erário público. Ou seja, não escandaliza ninguém. É possível preencher páginas e páginas do Diário da República sem perturbar o admirável sono da nação. Acresce que não falta por aí mão-de-obra especializada neste labor. Na verdade, em cada ministro e em cada secretário de Estado há uma fonte inesgotável de leis, regulamentos e afins. Em Portugal, decidir é sinónimo de legislar: quem não legisla, não produz, não reforma – não manda.
Vem isto a propósito da intenção de rever a lei da tutela administrativa. O que pretende fazer Eduardo Cabrita, secretário de Estado Adjunto da Administração Pública? Simples: que os autarcas acusados de um crime pelo Ministério Público fiquem automaticamente com o mandato suspenso. À primeira vista, parece um achado. Realmente, se a lei obrigasse os autarcas nestas circunstâncias a suspender os mandatos, o país não passaria o vexame de suportar que ilustres personagens – Valentim, Felgueiras, Isaltino – continuassem à frente de algumas câmaras do país. O bom nome da pátria seria, portanto, restaurado.
Acontece que não é bem assim. Diz a Constituição: presume-se inocente todo o arguido até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Ou seja, até se esgotarem os recursos possíveis. A presunção de inocência é, portanto, um direito impossível de dividir. Ninguém poder ser meio culpado ou meio inocente. Ou é uma coisa ou é outra. O que o Governo propõe é uma espécie de híbrido: os autarcas acusados não são culpados, mas à cautela perdem logo o direito de exercer os cargos para que foram eleitos. No final do processo, se forem ilibados, poderão recuperar todos os seus direitos. Até lá, vegetam no limbo. No preâmbulo da lei talvez se escreva: quem não deve, não teme. Ou então: aqui não há fiado. Melhor: hoje há caracóis. Então, sim, o carácter populista da medida seria frontalmente assumido.
É apenas isso que o Eduardo Cabrita quer: agradar às massas. Para ele, é irrelevante que este estatuto de inferioridade se aplique só aos autarcas, não aos outros detentores de cargos públicos. Não lhe interessa que o risco de manipulação política seja enorme – não é difícil, em Portugal, ser-se acusado de um crime; pelo contrário é relativamente fácil. Não o preocupa que, dentro da definição de crime, haja vários tons de gravidade. Finalmente, não lhe entra na cabeça que a presunção de inocência seja um pilar essencial das sociedades democráticas: arguido não é o mesmo do que culpado; acusado não é o mesmo do que condenado; e autarca, apesar da selvajaria urbana, não é o mesmo do que criminoso."
André Macedo
Vem isto a propósito da intenção de rever a lei da tutela administrativa. O que pretende fazer Eduardo Cabrita, secretário de Estado Adjunto da Administração Pública? Simples: que os autarcas acusados de um crime pelo Ministério Público fiquem automaticamente com o mandato suspenso. À primeira vista, parece um achado. Realmente, se a lei obrigasse os autarcas nestas circunstâncias a suspender os mandatos, o país não passaria o vexame de suportar que ilustres personagens – Valentim, Felgueiras, Isaltino – continuassem à frente de algumas câmaras do país. O bom nome da pátria seria, portanto, restaurado.
Acontece que não é bem assim. Diz a Constituição: presume-se inocente todo o arguido até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Ou seja, até se esgotarem os recursos possíveis. A presunção de inocência é, portanto, um direito impossível de dividir. Ninguém poder ser meio culpado ou meio inocente. Ou é uma coisa ou é outra. O que o Governo propõe é uma espécie de híbrido: os autarcas acusados não são culpados, mas à cautela perdem logo o direito de exercer os cargos para que foram eleitos. No final do processo, se forem ilibados, poderão recuperar todos os seus direitos. Até lá, vegetam no limbo. No preâmbulo da lei talvez se escreva: quem não deve, não teme. Ou então: aqui não há fiado. Melhor: hoje há caracóis. Então, sim, o carácter populista da medida seria frontalmente assumido.
É apenas isso que o Eduardo Cabrita quer: agradar às massas. Para ele, é irrelevante que este estatuto de inferioridade se aplique só aos autarcas, não aos outros detentores de cargos públicos. Não lhe interessa que o risco de manipulação política seja enorme – não é difícil, em Portugal, ser-se acusado de um crime; pelo contrário é relativamente fácil. Não o preocupa que, dentro da definição de crime, haja vários tons de gravidade. Finalmente, não lhe entra na cabeça que a presunção de inocência seja um pilar essencial das sociedades democráticas: arguido não é o mesmo do que culpado; acusado não é o mesmo do que condenado; e autarca, apesar da selvajaria urbana, não é o mesmo do que criminoso."
André Macedo
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