Carta aos capelães hospitalares
"Caros capelães
Perante algumas interrogações sobre o futuro jurídico e pastoral das capelanias hospitalares, quero dirigir-vos duas palavras. Uma de apoio e outra de discernimento.
O apoio é total, à vossa vontade comprovada de estar ao lado dos doentes, bem como das suas famílias e de todos os que nos estabelecimentos hospitalares e de saúde, públicos ou privados, se dedicam ao respectivo tratamento. E de estar ao seu lado com o que é específico dos ministros duma religião que tem no serviço do próximo a sua inspiração e propósito constantes, à luz da parábola do Bom Samaritano.
Apoio também a tudo quanto tem sido feito para desenvolver nesses estabelecimentos uma acção conjugada das capelanias com a Medicina em geral, para o apoio espiritual aos doentes, tantas vezes reconhecido como determinante para a sua recuperação ou tratamento, bem como para a vivência serena de momentos decisivos.
O discernimento é preciso, em termos de esclarecimento próprio e alheio. O que está em causa, quando se restringe a proposta religiosa, geral ou específica, no espaço público ou estatal? Pode estar em causa um preconceito de tipo laicista, que fere a liberdade pessoal e contraria a própria laicidade ou secularidade do Estado.
Detenhamo-nos um pouco sobre este ponto. A laicidade ou secularidade do Estado é um real ganho da história e da civilização. Considera que, no seu âmbito específico e como organização política fundamental, o Estado não tem nem promove uma confissão religiosa particular, em detrimento de outras ou de nenhuma, dos cidadãos que a não compartilham. Mas, se daqui partirmos para uma atitude estatal que considere irrelevante ou meramente individual a atitude religiosa, para concluir que não lhe deve dar condições de autodesenvolvimento e concretização comunitária, então estamos diante duma laicidade negativa, também designada por laicismo ou secularismo.
A maior dificuldade que esta atitude acarreta provém da sua natureza ideológica. Na verdade, não parte do respeito pela realidade de cada pessoa e da própria sociedade ou sociabilidade, mas duma abstracção conceptual que pretende criar outra realidade. Parte do princípio de que a convicção religiosa e a preferência cultural são algo de individual, que cada um resolve por si mesmo. Esquece que, sendo dimensões intrínsecas do ser humano, como toda a história demonstra, são necessariamente inter-pessoais. Esquece que, como facto cultural e social, a religião pode e deve ser reciprocamente proposta, mesmo que não seja acolhida. Devemos aos outros a proposta religiosa e a partilha das convicções. Quando tal não acontece nem é promovido, é a própria vivência democrática que se rarefaz.
Pelo contrário, a laicidade positiva levará o Estado a respeitar a realidade, também religiosa, de cada sociedade e, sem se imiscuir nela, criar as condições da respectiva concretização e proposta, possibilitando a todas as confissões a sua interacção no espaço público, como manifestação criativa da vitalidade social e cultural. Só assim se respeita activamente a realidade de cada pessoa e dos seus grupos de pertença.
Avancemos, pois. E que este momento de reflexão seja também de cultura e cidadania activas. A bem da cultura da vida, de cada pessoa enferma e da sociedade de nós todos. "
Manuel Clemente, Bispo do Porto
Perante algumas interrogações sobre o futuro jurídico e pastoral das capelanias hospitalares, quero dirigir-vos duas palavras. Uma de apoio e outra de discernimento.
O apoio é total, à vossa vontade comprovada de estar ao lado dos doentes, bem como das suas famílias e de todos os que nos estabelecimentos hospitalares e de saúde, públicos ou privados, se dedicam ao respectivo tratamento. E de estar ao seu lado com o que é específico dos ministros duma religião que tem no serviço do próximo a sua inspiração e propósito constantes, à luz da parábola do Bom Samaritano.
Apoio também a tudo quanto tem sido feito para desenvolver nesses estabelecimentos uma acção conjugada das capelanias com a Medicina em geral, para o apoio espiritual aos doentes, tantas vezes reconhecido como determinante para a sua recuperação ou tratamento, bem como para a vivência serena de momentos decisivos.
O discernimento é preciso, em termos de esclarecimento próprio e alheio. O que está em causa, quando se restringe a proposta religiosa, geral ou específica, no espaço público ou estatal? Pode estar em causa um preconceito de tipo laicista, que fere a liberdade pessoal e contraria a própria laicidade ou secularidade do Estado.
Detenhamo-nos um pouco sobre este ponto. A laicidade ou secularidade do Estado é um real ganho da história e da civilização. Considera que, no seu âmbito específico e como organização política fundamental, o Estado não tem nem promove uma confissão religiosa particular, em detrimento de outras ou de nenhuma, dos cidadãos que a não compartilham. Mas, se daqui partirmos para uma atitude estatal que considere irrelevante ou meramente individual a atitude religiosa, para concluir que não lhe deve dar condições de autodesenvolvimento e concretização comunitária, então estamos diante duma laicidade negativa, também designada por laicismo ou secularismo.
A maior dificuldade que esta atitude acarreta provém da sua natureza ideológica. Na verdade, não parte do respeito pela realidade de cada pessoa e da própria sociedade ou sociabilidade, mas duma abstracção conceptual que pretende criar outra realidade. Parte do princípio de que a convicção religiosa e a preferência cultural são algo de individual, que cada um resolve por si mesmo. Esquece que, sendo dimensões intrínsecas do ser humano, como toda a história demonstra, são necessariamente inter-pessoais. Esquece que, como facto cultural e social, a religião pode e deve ser reciprocamente proposta, mesmo que não seja acolhida. Devemos aos outros a proposta religiosa e a partilha das convicções. Quando tal não acontece nem é promovido, é a própria vivência democrática que se rarefaz.
Pelo contrário, a laicidade positiva levará o Estado a respeitar a realidade, também religiosa, de cada sociedade e, sem se imiscuir nela, criar as condições da respectiva concretização e proposta, possibilitando a todas as confissões a sua interacção no espaço público, como manifestação criativa da vitalidade social e cultural. Só assim se respeita activamente a realidade de cada pessoa e dos seus grupos de pertença.
Avancemos, pois. E que este momento de reflexão seja também de cultura e cidadania activas. A bem da cultura da vida, de cada pessoa enferma e da sociedade de nós todos. "
Manuel Clemente, Bispo do Porto
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