sexta-feira, maio 09, 2008

Adeus socialismo

"Os discursos e gestos dos socialistas actuais perderam toda a genuinidade e transformaram-se num faz-de-conta rocambolesco.

Tive agora a oportunidade de rever o filme “Adeus Lenine”. Ele retrata a história de uma família da ex-RDA no momento da unificação alemã. O pai desta família tinha fugido para a República Federal. A mãe, fervorosa adepta do regime comunista, ficara voluntariamente para trás, com uma filha e um filho. Pouco antes da queda do muro, a mãe adoece e entra em coma, da qual só sai quando a Alemanha está já unificada. O filho, para evitar o choque que a notícia da reunificação causaria à mãe, decide fazer de conta que nada aconteceu e rodeá-la, sempre na cama do seu quarto, da ilusão de que a RDA continua a existir. Esta situação dá origem a uma multiplicidade de peripécias hilariantes: os esforços para arranjar as conservas de pepino preferidas da mãe, mas que já tinham deixado de ser produzidas; a encenação de uma visita de jovens pioneiros comunistas para festejar o aniversário da doente; a passagem na televisão – através de um gravador de vídeo escondido – de telejornais que repetem que tudo vai bem no reino de Honecker, etc.

A situação desta mãe faz-me pensar na situação actual do socialismo, não apenas do marxismo-leninismo que a RDA reclamava como ideologia oficial, mas também das outras formas de socialismo, incluindo o socialismo democrático à portuguesa. No seguimento dos acontecimentos da Alemanha em 1989, o vento da história varreu o velho mundo e fez nascer um novo. Pense-se no fim da guerra fria e no terrorismo catastrofista, no alargamento do espaço europeu, na concorrência acrescida por parte das potências emergentes, nas migrações globais, na diluição das soberanias nacionais (o que é especialmente verdade no caso português), etc. O novo mundo não é com certeza perfeito e o velho não teria apenas desvantagens. Mas essa questão não é agora importante. O que é relevante é o facto da mudança e a impossibilidade de voltar atrás.

Diante da mudança, que fazem os filhos do socialismo? Exactamente aquilo que acontece no filme “Adeus Lenine”. Ou seja, eles sabem que o mundo mudou, mas procuram iludir esse facto. Rodeiam o seu socialismo de uma série de cuidados que visam evitar o confronto da ideologia com a realidade – tal como no filme os filhos fazem com a sua mãe. Por isso os discursos e gestos dos socialistas actuais perderam toda a genuinidade e transformaram-se num faz-de-conta rocambolesco. Toda a gente compreende que aquilo que os governos socialistas fazem pouco ou nada tem de socialismo, pese embora a sua tendência para o estatismo (pelo menos em Portugal, essa tendência é igualmente partilhada por socialistas e conservadores).

Apesar das evidências, os socialistas teimam em afirmar que continuam fiéis aos mesmos princípios, embora se trate agora de os aplicar de um modo diferente. Esta é uma conversa gasta. Quando uma visão ideológica perde o comboio da história, há sempre quem venha dizer que se trata simplesmente de adaptar os velhos princípios aos novos tempos. É esta falácia que permite que a ditadura chinesa continue a pregar o maoismo, enquanto favorece um capitalismo sem lei. É a mesma falácia que permite aos nossos socialistas continuar a apregoar a sua fidelidade ao socialismo democrático, enquanto põem em prática – e bem – uma tímida liberalização da sociedade portuguesa: ao nível da abertura dos mercados, da contratação na administração pública, da legislação laboral, etc.

Mais cedo ou mais tarde, os socialistas terão de reconhecer, em nome da honestidade intelectual, que o projecto de uma sociedade socialista caducou. No tempo que passa, o ataque às liberdades económicas e ao mercado e a defesa da socialização dos meios de produção – e o que é o socialismo, senão isso? – apenas conduziriam ao isolamento, ao empobrecimento e à entropia social. Por isso seria bastante melhor para todos, incluindo para os próprios, que os socialistas permitissem que a sua matriz ideológica se confrontasse com a realidade, sem terceiras vias nem outros subterfúgios. Essa confrontação deixaria claro que, ao contrário do que dizem alguns dos seus adversários, não é verdade que os socialistas tenham traído a sua causa. A causa é que acabou. Ou seja, ela deixou de fazer sentido face à evolução do mundo
."

João Cardoso Rosas

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