Regras e poderes
"Em Portugal e noutros países do Sul há uma grande tendência para a fraude discente, acompanhada por uma tolerância generalizada.
Uma das formas de marcar a diferença entre um país bem sucedido e outro que o não é consiste em atentar no peso relativo do respeito por regras gerais e da submissão a poderes concretos. Os países simultaneamente mais desenvolvidos e com maior justiça social são aqueles em que predomina uma cultura e uma atitude pessoal de respeito por regras definidas pela via democrática ou pela espontaneidade social e, dessa forma, também uma menor capacidade de exercício ou de sujeição a poderes de tipo discricionário.
Podemos estabelecer este contraste na própria Europa, entre os países do norte e os países do Sul. Na Europa do Sul não estamos habituados a jogar segundo as regras do jogo. Ou seja, temos falta de ‘fair-play’. Isso vê-se em todas as áreas da vida social. A generalidade da população não respeita o código da estrada, não pratica ou não conhece as regras de cortesia, e não considera que as leis em geral tenham uma qualquer relação com as suas pessoas concretas. Na vida empresarial, muitos procuram contornar a concorrência com esquemas fraudulentos, fuga aos impostos – que continua a ser imensa entre nós nas pequenas empresas –, e uma actuação genericamente baseada no compadrio. Quanto à relação com o Estado e as benesses que ele pode dar, a impressão geral é que só não “rouba” quem não pode.
É claro que todas estas coisas também podem existir – e existem – nos países do norte da Europa. Mas há uma importante diferença. Aí essas actuações são socialmente condenadas e, também, dessa forma, muito mais contidas. Por cá, pelo contrário, elas são celebradas. Muitos falam com orgulho da sua esperteza saloia e dos seus esquemas pouco sérios. A generalidade não tem qualquer atitude condenatória diante dessa mesma esperteza ou desses esquemas.
Como professor, tenho uma experiência ilustrativa ao lidar com a fraude discente (vulgo: copianço). Em Portugal e noutros países do sul há uma grande tendência para a fraude discente, acompanhada por uma tolerância generalizada. Assim, muitos não têm vergonha de dizer aos colegas que copiam. Outros não o verbalizam, mas estão perfeitamente à vontade com a prática. As universidades, por seu turno, têm uma atitude incrivelmente branda em relação ao assunto. Um aluno apanhado a copiar pode reprovar, mas também pode voltar a fazer a disciplina a que reprovou. No Norte da Europa ninguém admite copiar – embora alguns o façam – e quem é apanhado a fazê-lo é expulso da universidade.
Onde não existe respeito pelas regras – sejam elas organizacionais, económicas, as da lei geral do país, etc. – acabam por predominar os poderes discricionários, mais ou menos mafiosos. Os indivíduos e as organizações não dependem de si mesmos, do modo como se comportam nos diversos jogos sociais em que estão envolvidos, mas apenas das suas relações especiais de poder ou subserviência. Daí o esquema geral de recrutamento empresarial não ser o mérito mas a “cunha”. Daí as promoções não assentarem muitas vezes numa cuidadosa análise do desempenho de cada um, mas apenas no “apadrinhamento”. Daí o facto de o mercado concorrencial em geral não funcionar tão bem como noutras paragens. Daí também o generalizado desrespeito da lei e das regras de civilidade nos espaços públicos, entre vizinhos, e por aí adiante. Enfim, daí o pior funcionamento da nossa economia e do próprio convívio social.
Recorde-se que, como disse de início, o desprezo pelas regras gerais e o recurso aos favores de quem tem poder são uma causa de subdesenvolvimento, mas também de falta de justiça social. Ao contrário do que muitos pensam – pelo menos a avaliar pelo que dizem e escrevem nos jornais – a justiça social não consiste em transformar o Estado num Robin dos Bosques em momentos de crise. Pelo contrário, a teoria e a experiência ensinam-nos antes que a justiça consiste em estabelecer regras institucionais estáveis e fiáveis – sobretudo ao nível da fiscalidade, da educação e da formação profissional – que permitam que a distribuição primária do rendimento e da riqueza se faça sem uma excessiva intervenção da Segurança Social e a habitual transformação dos nossos pobres tradicionais de chapéu na mão em dependentes estatais mal agradecidos"
João Cardoso Rosas
Uma das formas de marcar a diferença entre um país bem sucedido e outro que o não é consiste em atentar no peso relativo do respeito por regras gerais e da submissão a poderes concretos. Os países simultaneamente mais desenvolvidos e com maior justiça social são aqueles em que predomina uma cultura e uma atitude pessoal de respeito por regras definidas pela via democrática ou pela espontaneidade social e, dessa forma, também uma menor capacidade de exercício ou de sujeição a poderes de tipo discricionário.
Podemos estabelecer este contraste na própria Europa, entre os países do norte e os países do Sul. Na Europa do Sul não estamos habituados a jogar segundo as regras do jogo. Ou seja, temos falta de ‘fair-play’. Isso vê-se em todas as áreas da vida social. A generalidade da população não respeita o código da estrada, não pratica ou não conhece as regras de cortesia, e não considera que as leis em geral tenham uma qualquer relação com as suas pessoas concretas. Na vida empresarial, muitos procuram contornar a concorrência com esquemas fraudulentos, fuga aos impostos – que continua a ser imensa entre nós nas pequenas empresas –, e uma actuação genericamente baseada no compadrio. Quanto à relação com o Estado e as benesses que ele pode dar, a impressão geral é que só não “rouba” quem não pode.
É claro que todas estas coisas também podem existir – e existem – nos países do norte da Europa. Mas há uma importante diferença. Aí essas actuações são socialmente condenadas e, também, dessa forma, muito mais contidas. Por cá, pelo contrário, elas são celebradas. Muitos falam com orgulho da sua esperteza saloia e dos seus esquemas pouco sérios. A generalidade não tem qualquer atitude condenatória diante dessa mesma esperteza ou desses esquemas.
Como professor, tenho uma experiência ilustrativa ao lidar com a fraude discente (vulgo: copianço). Em Portugal e noutros países do sul há uma grande tendência para a fraude discente, acompanhada por uma tolerância generalizada. Assim, muitos não têm vergonha de dizer aos colegas que copiam. Outros não o verbalizam, mas estão perfeitamente à vontade com a prática. As universidades, por seu turno, têm uma atitude incrivelmente branda em relação ao assunto. Um aluno apanhado a copiar pode reprovar, mas também pode voltar a fazer a disciplina a que reprovou. No Norte da Europa ninguém admite copiar – embora alguns o façam – e quem é apanhado a fazê-lo é expulso da universidade.
Onde não existe respeito pelas regras – sejam elas organizacionais, económicas, as da lei geral do país, etc. – acabam por predominar os poderes discricionários, mais ou menos mafiosos. Os indivíduos e as organizações não dependem de si mesmos, do modo como se comportam nos diversos jogos sociais em que estão envolvidos, mas apenas das suas relações especiais de poder ou subserviência. Daí o esquema geral de recrutamento empresarial não ser o mérito mas a “cunha”. Daí as promoções não assentarem muitas vezes numa cuidadosa análise do desempenho de cada um, mas apenas no “apadrinhamento”. Daí o facto de o mercado concorrencial em geral não funcionar tão bem como noutras paragens. Daí também o generalizado desrespeito da lei e das regras de civilidade nos espaços públicos, entre vizinhos, e por aí adiante. Enfim, daí o pior funcionamento da nossa economia e do próprio convívio social.
Recorde-se que, como disse de início, o desprezo pelas regras gerais e o recurso aos favores de quem tem poder são uma causa de subdesenvolvimento, mas também de falta de justiça social. Ao contrário do que muitos pensam – pelo menos a avaliar pelo que dizem e escrevem nos jornais – a justiça social não consiste em transformar o Estado num Robin dos Bosques em momentos de crise. Pelo contrário, a teoria e a experiência ensinam-nos antes que a justiça consiste em estabelecer regras institucionais estáveis e fiáveis – sobretudo ao nível da fiscalidade, da educação e da formação profissional – que permitam que a distribuição primária do rendimento e da riqueza se faça sem uma excessiva intervenção da Segurança Social e a habitual transformação dos nossos pobres tradicionais de chapéu na mão em dependentes estatais mal agradecidos"
João Cardoso Rosas
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