quinta-feira, agosto 21, 2008

Desta vez a culpa não é dos criminosos.

"Sequestro do BES. Confrontos na Quinta da Fonte e na Quinta do Mocho. Tiroteio na Abrançalha. – Sem darmos por isso o crime tomou conta das notícias. E isto numa sociedade que há anos se dedica a negar que o crime existe. Agora chega com snipers, GOE’s, “gang’s rivais”. Contudo há anos que tudo isto estava a anunciar-se diante dos nossos olhos.

Veja-se o caso da Abrançalha onde as forças policiais foram atacadas. De repente parecia inacreditável que tal acontecesse. Na verdade isso era absolutamente previsível pelo menos para quem tivesse seguido o que acontecera naquela localidade há precisamente um ano.


Em Agosto de 2007, o mesmo grupo que agora roubou uma arma aos agentes, tentou assaltar um jovem. Este resistiu ao assalto. O resultado traduziu-se na fuga da família do jovem que resistiu ao assalto pois o grupo a que agora se chama “talibans” ameaçava-os de morte.

Duas semanas depois, o “Diário de Notícias” referia que a família continuava em fuga. O pai perdera o emprego por faltas. Protecção policial também não tinham pois o casal, que teve menos de uma hora para desaparecer da Abrançalha, não tratara do expediente burocrático para a solicitar e mesmo assim não era certo que o juiz a considerasse necessária.

Um mês mais tarde, segundo o mesmo jornal, estavam “a tentar refazer a vida no estrangeiro”. Os avós, que tinham ficado na aldeia, tinham sido entretanto devidamente sovados pelo dito gang que continuou a receber tranquilamente o Rendimento de Inserção e a aterrorizar quem lhe apetecia.

Em 2007, não causou particular escândalo que uma família tivesse de fugir do país porque receava pela sua segurança. Aliás nesse mesmo Verão as estatísticas garantiam aos portugueses que a criminalidade violenta estava a diminuir. E estatisticamente estava. E estará sempre que se quiser. Para tal basta complicar os procedimentos para apresentação das queixas. Ou deixar instalar o sentimento de que nem vale a pena fazer queixa.

A invisibilidade deste tipo de criminalidade é um dos traços do nosso tempo. E está longe de se restringir a Portugal. Experimente-se, por exemplo, procurar na net ou nos sites dos jornais franceses, sejam eles de esquerda ou de direita, os nomes de Gilbert Dubret e Philippe Sarcey. O resultado é próximo de zero.

Gilbert Dubret e Philippe Sarcey eram funcionários do gigante francês da electricidade, EDF. Foram assassinados, respectivamente em 1983 e 1993, quando estavam a fazer o seu trabalho. Em 2005, um relatório sobre as agressões aos trabalhadores dos sectores do gás e da energia foi-lhes dedicado. O que se lê nesse relatório é uma espécie de crónica anunciada dos tumultos que, meses depois, puseram a França em pé de guerra: durante décadas as autoridades e os gestores subestimaram as agressões de que os trabalhadores eram e são vítimas. E contudo eles eram pontapeados, queimados, assaltados, humilhados…

Na comunicação social, este tipo de violência não consegue sequer passar da secção de fait-divers da imprensa regional. Nos poucos casos em que as agressões eram referidas surgiam como acidente de trabalho.

Os funcionários dos transportes públicos e dos serviços municipalizados, os bombeiros e vigilantes das escolas, ou seja aqueles que, como Gilbert Dubret e Philippe Sarcey, procuram assegurar o funcionamento de serviços essenciais, foram as primeiras vítimas duma criminalidade que não se quis ver.

Os exemplos podem continuar e os números variam de país para país. Portugal não é certamente o caso mais grave. O que temos de agradecer, seja em Portugal seja em muitos outros países, é o carácter ordeiro da população, criminosos incluídos. Pois é preciso ter um código de valores forte para que, recebendo tantos sinais de que o crime compensa ou pelo menos não prejudica os criminosos, não desatemos todos a roubar, agredir e ameaçar quem nos apetecer.

O legislador, essa figura aparentada com o Espírito Santo, pois nunca o vimos, nunca lhe podemos pedir contas e é suposto que lhe reconheçamos a superioridade do discernimento, resolveu diluir as tristezas das utopias que não realizou impondo a sua própria Cidade do Sol aos seus concidadãos. E sobretudo aos seus concidadãos mais pobres e mais desfavorecidos. Porque os outros, aqueles que têm meios e/ou cargos públicos, publicamente reiteram as teses do legislador. Mas na vida privada refugiam-se em condomínios fechados os nas zonas abastadas, tiram os filhos das escolas públicas, deslocam-se em carro de serviço ou viatura própria. Entretanto os pobres e aqueles que lutam todos os dias para não se tornarem pobres, ou seja aqueles que andam nos transportes públicos, que vivem nas periferias, que trabalham nas escolas e nos hospitais, que calcorreiam os municípios para levar cartas e instalar telefones, aqueles que nas diversas polícias contam os dias para que chegue a almejada promoção ou relatório médico que os retire dos piquetes que os levam àqueles locais onde o legislador nunca irá, estas pessoas todos os dias se confrontam com o grotesco resultado do legislador ter entendido que não vale a pena punir aquilo que ele mesmo chama pequena criminalidade. Ou, por maravilha da retórica, incidente.

Mas existem outras vítimas para além dos menos favorecidos. São elas os autores dos crimes: “Quando fiz 16 anos, deviam ter-me dado uma pena efectiva para que eu abrisse os olhos, porque cada crime que cometia começava a ser mais ousado. Já andava a meter-me em armas, em negócios de droga, e só me davam trabalho comunitário.” Luís Graça que fez, na prisão de Pinheiro da Cruz, estas declarações ao semanário “Sol”, recorda como se foi cada vez tornando mais violento até que “entrei num estado degradante e matei uma pessoa sem razão nenhuma”. Em que medida é que a banalidade com que foram tratadas as suas primeiras faltas o levaram a tornar-se um assassino?

A banalização do crime tem outros efeitos perversos: incapazes de perceber o critério das penas, os portugueses desinteressaram-se em absoluto sobre o que acontece nas cadeias. Que os presos se violem uns aos outros, que apanhem doenças graves na cadeia ou que o rotundo fracasso do programa de troca de seringas revele o autismo das autoridades prisionais e a estrutura de intimação entre presos é algo que não lhes interessa. O que lhes interessa é que os presos continuem presos. Uma vez cá fora e dada a grande impunidade com que os criminosos actuam também não parecerá mal, aos portugueses, que um sniper vá tendo ordem para disparar.

“Menos um” – é o que se lê nos blogues e imprensa on line que têm caixas de comentários. Na verdade não precisávamos de ter chegado aqui. E neste caso a culpa não é dos suspeitos do costume. Mas sim daqueles que decidem quem são os suspeitos
."

Helena Matos do Blasfénias no PÚBLICO de 19 de Julho

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