quinta-feira, dezembro 04, 2008

Socialismo descafeinado

"Ficámos a saber que a esquerda (incluindo a versão caviar) é gente de fé que acredita no mistério da ressurreição. De Marx, claro.

O general de Gaulle já suspeitava: “Não gosto dos comunistas porque são comunistas e não gosto dos socialistas porque não são socialistas”. É oportuno rever estas ideias estando a economia de mercado debaixo de fogo pesado. Sobretudo quando o provincianismo da suposta elite nacional, a incoerência ideológica de muitos ‘opinion makers’ aliada à superficialidade de muita imprensa, viciada na verdade ‘online’, têm digerido o ‘crash capitalista’ com tanta pobreza intelectual.

Compreendo que se nos pare a cabeça com a complexidade da crise. Admito a perplexidade perante a rapidez dos acontecimentos. Já me parece inaceitável que pessoas com obrigação de “fazer pensar” se permitam ter opiniões simplistas sobre a actual situação. Apenas porque promovem a ignorância.

Muitos dos analistas e políticos que comentaram o “tsunami” financeiro vieram clarificar que, no fundo, não acreditam no mercado. Em que acreditarão? Ainda se lembrarão de qual a ideologia que cometeu as maiores barbaridades contra a humanidade? E não será o capitalismo popular que está a tirar da miséria dezenas de milhões de chineses, indianos e brasileiros?
Merece destaque a felicidade com que parte da esquerda vai acolhendo as falências ao ritmo do ‘another one bites the dust’. É também elucidativa a insegurança com que digerem o tema “nacionalizações” muitos dos que, há 30 anos, as defendiam com ardor revolucionário e firmeza ideológica. Não menos ridícula foi a reacção dos pretensos liberais que saltaram para o colo do Estado ao primeiro soluço.

Porém, o mais triste foi constatar que poucos conseguem ter opinião se não tiverem inimigo. Um défice de pensamento do tipo “Chávez sem Bush”. A urgência na escolha do culpado (o mercado, esse malandro) revela a incapacidade de digestão da realidade. E ficámos ainda a saber que a esquerda (incluindo a versão caviar) é gente de fé que acredita no mistério da ressurreição. De Marx, claro.

Objectivamente, a pergunta essencial parece ser: o mercado funcionou ou falhou? Quem tem dúvidas, que avalie os índices bolsistas. Dizer que as falhas na regulação comprometem o modelo é infantil. Fingir que o sistema não evidenciou os abusos é desonesto. Não era isto que prometia o liberalismo: ajustamentos em função das expectativas e da confiança?

Curioso é que a maioria dos esquerdistas agora assanhados já se tinham rendido às delícias do capitalismo há décadas. A menos que não tenham cartão Visa, nem crédito habitação ou ‘leasing’ automóvel, nem quaisquer benefícios do sistema financeiro globalizado. E, acrescente-se, que muitos desses socialistas não-praticantes têm revelado especial habilidade para os negócios e notável gula capitalista. É que depois de usar um fatinho Boss e de umas férias na Quinta do Lago as coisas mudam um bocado. ‘Money talks’.

Num país em que o Estado pesa o dobro do que deve, onde poucos empresários não vivem empoleirados no sector publico e em que boa parte – numa postura bovina – acha que o Governo é dono do PIB, logo é quem mais ordena, era previsível a crítica fácil aos bandidos liberais.

A dura verdade é que ninguém ousa pensar numa alternativa a Wall Street. Com mais ou menos regulação, é por aí que retomaremos o caminho. Ainda que hoje seja ‘chique’ ter discursos inflamados contra a especulação e o capitalismo.

Comecei com De Gaulle mas acabo com sabor local : Mário Soares escreveu – no tom desafiador que lhe compete – um artigo recente cujo título era “Onde estão os neo-liberais ?”. Olhando para o mercado, parece-me óbvio que (os que não faliram) estão a aproveitar o momento para fazer grandes negócios. ‘C’est la vie’.

Dito isto, como bom social-democrata, não resisto a confessar que votarei Partido Socialista nas próximas eleições. Ainda que a solução ideal fosse o engº Sócrates candidatar-se à liderança do Partido Social Democrata ou – não sendo isso tecnicamente possível – o PS mudar de sigla para PSD (D de descafeinado, claro), deixando assim tudo mais claro
. "

José M.B. Roquette

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