O ÓPIO DE ALGUNS ATEUS
"Em Espanha, o debate teológico corre animado. E profundo. Primeiro foram os autocarros com dísticos, importados de Inglaterra, a negar a existência de Deus. Depois surgiram os autocarros com dísticos, de inspiração local, a afirmar a existência de Deus. Em seguida, a Igreja Católica acusou os autocarros ateus de blasfémia. Agora, associações de ateus e ateus avulsos usam a acusação enquanto prova cabal de que todas as religiões são iguais na intolerância.
De certeza? Para lá da infantilidade de ambas as campanhas, a generalização será talvez abusiva. Os inconsequentes protestos da Igreja espanhola não são a mesma coisa que a condenação à morte de Salman Rushdie pelo ayatollah Khomeini, há exactamente vinte anos. De igual modo, a opinião do Vaticano acerca do casamento gay não equivale ao assassínio de diversos agentes (tradutores, livreiros, etc.) ligados aos Versículos Satânicos, e a recusa católica dos preservativos não possui a gravidade dos crimes consumados ou tentados que, de então para cá, a referência ou representação menos abonatória de Maomé crescentemente suscitam.
No nosso tempo, que no caso é o que importa, não é vasta a lista de católicos, protestantes, judeus ou xintoístas acusados de violência motivada pela intransigência, a qual se costuma quedar pela discórdia teórica e relativamente civilizada. A fúria fundamentalista capaz de influenciar as nossas vidas é quase exclusiva do Islão, e transformar a tonta disputa dos autocarros num argumento "revelador" dos idênticos perigos de qualquer crença procura não só relativizar essa fúria, mas legitimá-la.
É estranho serem ateus a redimir, pelo menos por omissão, a imagem da única ameaça religiosa contemporânea. A estranheza esvai-se se pensarmos no tipo de ateus em causa, provavelmente dos que se indignam com um crucifixo na parede e se enfeitam com lenços palestinianos, dos que exigem a ordenação sacerdotal das mulheres e ignoram a sua lapidação. Às vezes, o problema dessa gente não parece prender-se com as religiões: apenas com as religiões que a História subordinou ao Estado, como se a cedência aos sistemas democráticos que abominam lhes fosse insuportável. Convém lembrar que, comovidos face ao poder absoluto, inúmeros ateus ocidentais celebraram a ascensão de Khomeini na alegria que haviam dedicado à maioria das erupções totalitárias do século. É possível que os ateus dos autocarros sejam seus nostálgicos herdeiros. É garantido que semelhante, e absurda, militância enxovalha o ateísmo autêntico que partilho, sem orgulho e normalmente sem vergonha."
Alberto Gonçalves
De certeza? Para lá da infantilidade de ambas as campanhas, a generalização será talvez abusiva. Os inconsequentes protestos da Igreja espanhola não são a mesma coisa que a condenação à morte de Salman Rushdie pelo ayatollah Khomeini, há exactamente vinte anos. De igual modo, a opinião do Vaticano acerca do casamento gay não equivale ao assassínio de diversos agentes (tradutores, livreiros, etc.) ligados aos Versículos Satânicos, e a recusa católica dos preservativos não possui a gravidade dos crimes consumados ou tentados que, de então para cá, a referência ou representação menos abonatória de Maomé crescentemente suscitam.
No nosso tempo, que no caso é o que importa, não é vasta a lista de católicos, protestantes, judeus ou xintoístas acusados de violência motivada pela intransigência, a qual se costuma quedar pela discórdia teórica e relativamente civilizada. A fúria fundamentalista capaz de influenciar as nossas vidas é quase exclusiva do Islão, e transformar a tonta disputa dos autocarros num argumento "revelador" dos idênticos perigos de qualquer crença procura não só relativizar essa fúria, mas legitimá-la.
É estranho serem ateus a redimir, pelo menos por omissão, a imagem da única ameaça religiosa contemporânea. A estranheza esvai-se se pensarmos no tipo de ateus em causa, provavelmente dos que se indignam com um crucifixo na parede e se enfeitam com lenços palestinianos, dos que exigem a ordenação sacerdotal das mulheres e ignoram a sua lapidação. Às vezes, o problema dessa gente não parece prender-se com as religiões: apenas com as religiões que a História subordinou ao Estado, como se a cedência aos sistemas democráticos que abominam lhes fosse insuportável. Convém lembrar que, comovidos face ao poder absoluto, inúmeros ateus ocidentais celebraram a ascensão de Khomeini na alegria que haviam dedicado à maioria das erupções totalitárias do século. É possível que os ateus dos autocarros sejam seus nostálgicos herdeiros. É garantido que semelhante, e absurda, militância enxovalha o ateísmo autêntico que partilho, sem orgulho e normalmente sem vergonha."
Alberto Gonçalves
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